Ao vivo: 10.º Festival Porta-Jazz

Fundada no ano de 2010, a associação Porta-Jazz tem promovido diversas iniciativas para divulgar o trabalho desenvolvido pelos músicos jazz do Porto. Além da edição de discos (cerca de meia centena, através do selo editorial Carimbo Porta-Jazz) e da Sala Porta-Jazz (espaço de concertos com programação regular e atenta), a associação organiza o seu festival, homónimo, que se tem realizado com regularidade anual. Chegado à sua 10.ª edição, o Festival Porta-Jazz realizou-se nos dias 7, 8 e 9 de Fevereiro num espaço emblemático da cidade do Porto, o Rivoli – Teatro Municipal, com a programação distribuída por diferentes salas.

O festival arrancou com o projeto HVIT, do pianista e compositor João Grilo (também mentor do projeto O Grilo e a Longifolia) que lidera aqui um quarteto onde tem a companhia do saxofonista luso José Soares e os escandinavos Christian Meaas Svendsen (contrabaixo) e Simon Olderskog Albertsen (bateria). A música é complementada com uma componente de vídeo, trabalhado em tempo real por Miguel C. Tavares. A primeira impressão da actuação do quinteto no grande auditório do Rivoli é a perfeita sincronia entre imagem e música. A música é meticulosamente estruturada, fechada em momentos bem definidos, com pouco espaço para invenção individual, mas para funcionar necessita de uma interpretação precisa e os músicos contribuem com esse trabalho rigoroso (destaque para Soares, jovem talento em ascensão). O piano lança as ideias, o trio de saxofone alto, contrabaixo e bateria responde; a música vive nessa união colectiva, em diálogo pré-definido, entre uníssonos e contrapontos, sublinhada pela imagem do vídeo. A música atravessa ambientes contrastantes, de momentos rugosos e atmosféricos até melodias sedutoras (por vezes chega até a lembrar Sassetti), e o resultado global é profundamente coerente. Este concerto inaugural confirmou a criatividade do compositor e o rigor da interpretação do quarteto, além de mostrar a fluidez da música para se interligar com outras áreas artísticas.

O segundo grande momento do festival chegou com a actuação do Coreto, uma das formações mais representativas da cena jazz portuense, a apresentar o espectáculo Celebration. Este ensemble de média/grande dimensão (doze elementos) tem interpretado composições de diferentes músicos ao longo do seu percurso e já editou quatro discos: Aljamia (2012), Mergulho (2014), Sem Chão (2015) e Analog (2017). O grupo apresentou-se no Rivoli com a sua formação habitual de quatro saxofones (João Pedro Brandão, José Pedro Coelho, Rui Teixeira e Hugo Ciríaco), dois trompetes (Susana Santos Silva e Ricardo Formoso), dois trombones (Daniel Dias e Andreia Santos), guitarra (AP), piano (Hugo Raro), contrabaixo (José Carlos Barbosa) e bateria (José Marrucho). Neste concerto o Coreto apresentou uma espécie de “best of”, interpretando temas compostos por diferentes músicos. A actuação arrancou com um tema da autoria do sueco Torbjörn Zetterberg, que participou também na condição de contrabaixista, havendo espaço para solos do próprio e da trompetista Susana Santos Silva. Seguiram-se temas de AP (António Pedro Neves, que assinou a composição do disco Mergulho) e João Pedro Brandão (que assina os temas dos discos Aljamia e Analog). Há que destacar a qualidade e energia de alguns solos, nomeadamente de AP (em “Raiz”), Daniel Dias (em “Curto-circuito”), José Pedro Coelho (em “Ainda”) e João Pedro Brandão no tema que fechou o concerto – momento bonito e justo, uma vez que Brandão tem sido o principal dinamizador da associação e teve aqui espaço para exibir a sua qualidade artística, sendo retribuído com um merecido aplauso. O Coreto mostrou o seu jazz actual, complexo e vibrante, resultado da maturidade e qualidade dos compositores e intérpretes envolvidos.

Para o terceiro concerto da noite o festival mudou-se para o café do Rivoli, que acolheu a actuação da dupla Jim Hart & Alfred Vogel (parceria com o festival austríaco Bezau Beatz). O duo apresentou um diálogo de vibrafone (Hart) e bateria (Vogel), um desafio que à partida não seria fácil, pela natureza seca de ambos os instrumentos. A dupla tratou de arrancou com energia, conquistando o público, mas ao longo da actuação a ligação ia-se perdendo e a performance atravessou diferentes fases, nem sempre interessantes. O vibrafone lançava motivos melódicos para agarrar o diálogo, mas rapidamente a dupla afastava-se. Apesar de tudo (e o próprio espaço de café-concerto não era um espaço com as  condições ideais para a criação musical) Hart e Vogel foram conseguindo encontrar alguns pontos de encontro, mantendo-se à tona. Seguiu-se depois uma jam-session, aberta com um grupo de músicos adolescentes, que se atiraram sem medo ao clássico “It could happen to you”.

Nesta primeira noite do festival o grande auditório estava cheio, com público atento e entusiasta, um feito notável tendo em conta que o programa não contava com grandes nomes internacionais ou chamarizes de apelo popular. O festival continuou no sábado e domingo com actuações que muito prometiam: Orquestra Jazz de Matosinhos com o convidado Peter Evans; Susana Santos Silva e o seu projecto Impermanence (a apresentar um novo disco, The Ocean Inside a Stone); Pedro Neves Trio (na bagagem, ainda fresco, o disco Murmuration); MAU (a apresentar o recente Utopia, com Pedro Melo Alves na bateria); João Mortágua (Dentro da Janela); e Hugo Carvalhais (com o novo Ascetica e o saxofonista lituano Liudas Mockunas como convidado); entre outros. Infelizmente não foi possível assistir à totalidade do programa, mas essa primeira noite foi suficiente para sentir e perceber o ambiente tão especial e único que caracteriza este festival. Este não é só mais um festival, não são só mais alguns concertos:  a Porta-Jazz tem feito um trabalho magnífico e o festival é o momento em que a associação tem mais visibilidade pública, onde assistimos ao encontro entre músicos e público, onde se vê o volume de actividade que tem sido desenvolvido ao longo de todos estes anos. Ao vermos tanta gente reunida em redor desta música – um jazz contemporâneo, criativo e desafiante, que nem sempre é propriamente acessível – percebemos que o esforço tem valido a pena. O jazz portuense está de parabéns, venham mais dez anos de Porta-Jazz!