Colheita 2019: Realidades paralelas

O primeiro semestre do ano foi rico em jazz e música improvisada Made In Portugal. Em 2019 foram editados diversos discos da autoria de músicos portugueses e alguns desses álbuns foram já alvo de referências e destaques: “In Search of Light” (Eduardo Cardinho), “After Silence, Vol. I” (José Dias), “Summer Bummer” (The Attic), “Histórias do Céu e da Terra” (Isabel Rato), “The Clifton Bridge Landscapes” (Krake), “III” (TGB), “No Place to Fall” (Rodrigo Amado & Chris Corsano), “Boundaries” (Manuel Linhares), “The Garden of Earthly Delights” (André Carvalho), “Vol. III” (Mano a Mano), e “Volúpias” (Gabriel Ferrandini). Além destes, vários outros merecem atenção. Desde o jazz mais ligado a correntes mainstream até à pura improvisação livre, várias foram as propostas apresentadas por músicos nacionais, realidades musicais diferenciadas e muito válidas, que podem co-existir em simultâneo. Aqui ficam alguns dos destaques da colheita nacional 2019.

 


João Lencastre – “Parallel Realities”
(FMR Records, 2019)

O baterista e compositor João Lencastre tem desenvolvido uma discografia sólida, sobretudo ao leme do grupo Communion. Em trio com Jacob Sacks (piano) e Eivind Opsvik (contrabaixo) editou no final de 2017 o disco “Movements In Freedom” e prepara-se para editar em Setembro uma nova gravação com os mesmos músicos, “Song(s) of Hope” (via Clean Feed). Para este novo disco Lencastre foge do conceito Communion e desenvolve uma exploração livre com recurso a electrónicas, acentuando contrastes dramáticos. Aqui a bateria e electrónica de Lencastre está acompanhada por Albert Cirera (saxofones tenor e soprano), Rodrigo Pinheiro (piano), Pedro Branco (guitarra) e João Hasselberg (contrabaixo, baixo e electrónica). O quinteto desenvolve uma música que parte de uma matriz atmosférica, com ênfase na electrónica, e que vai evoluindo de forma dinâmica, pelo envolvimento dos cinco músicos, marcada pela fluidez. A capa, com uma imagem do espaço, assenta que nem uma luva à música do grupo: espacial e aventureira.

 


Gonçalo Marques – “Linhas”
(Porta-Jazz, 2019)

O trompetista Gonçalo Marques é já uma figura decisiva na cena jazz nacional, como pedagogo, promotor e dinamizador da editora Robalo. Como compositor e instrumentista já apresentou três excelentes discos (todos com excelentes títulos): “Da Vida e da Morte dos Animais” (2010), “Cabeça de nuvem só tem coração” (2015) e “Canção do Homem Simples” (2017). Já neste ano o trompetista acaba de apresentar um novo disco, com o projecto ¡Golpe!, chamado “Puzzle” – duo de trompete e bateria, com o baterista João Lopes Pereira e o convidado Jacob Sacks. Neste novo disco em nome próprio Marques dá mais um passo em frente na sua carreira, liderando um quarteto de músicos internacionais: Jacob Sacks no piano, Masa Kamaguchi no contrabaixo e Jeff Williams na bateria. Marques assina todos os temas, este disco é constituído exlcusivamente por composiçṍes originais. As composições abrem espaço para a interpretação dinâmica do quarteto, onde se destaca o som quente do trompete. Temas elegantes, interpretados com precisão e a intensidade certa. Mais um grande disco a marcar o ano.

 


Patrick Brennan & Abdul Moimême – “Terraphonia”
(Creative Sources, 2019)

O percurso de Abdul Moimême tem sido marcado por colaborações e parcerias (a mais recente é a participação no grupo In Igma de Pedro Melo Alves), mas é sobretudo digno de registo o seu peculiar trabalho a solo com a guitarra preparada – “Nekhephthu” é o disco mais representativo e foi neste formato que se apresentou no Jazz em Agosto 2019. Este novo registo, em duo, publicado pela imparável Creative Sources, junta-o ao saxofonista americano Patrick Brennan. A dupla apresenta um diálogo de música improvisada, entre saxofone de Brennan e a exploração da guitarra preparada de Moimême. A guitarra é trabalhada com técnicas extensivas e desenvolve texturas e sons particulares, metodicamente trabalhados de forma orgânica, artesanal, articulados com o saxofone expressivo, que responde e lança ideias. Do outro lado está o saxofone do americano, que responde com elementos mais jazzísticos. O resultado é uma comunicação atenta e dialogante.

 


Pedro Neves Trio – “Murmuration”

(Porta-Jazz, 2019)

Desde a sua estreia, em 2013 com “Ausente”, e depois com a confirmação definitiva do disco “05:21” em 2016, que o pianista Pedro Neves já não deveria ser segredo para ninguém. Para quem não conheça o seu trabalho, poderá começar por este novo disco, “Murmuration”, o seu terceiro em nome próprio. O piano de Neves conta com a companhia de Miguel Ângelo no contrabaixo e Leandro Leonet na bateria, parceiros desde o primeiro disco, esteios fundamentais de uma música que, assente na tradição, sabe encontrar desvios para brilhar. Música impecavelmente emotiva e elegante, conduzida pelo piano gracioso e bem apoiada por contrabaixo e bateria. Poderá continuar a passar ao lado da maior parte das grandes salas e festivais, mas aqui temos alguma da mais bela e delicada música jazz feita em Portugal.

 


New West Quartet – “East & West”

(Fresh Sound New Talent, 2019)

Em 2016 o guitarrista português Ricardo Pinheiro e o contrabaixista italiano residente em Lisboa Massimo Cavalli tiveram a ideia de formar um super grupo e convidaram Mário Laginha, Dave Liebman e Eric Ineke. O resultado foi o muito interessante disco “Is Seeing Believing?”, editado pela holandesa Daybreak. Em 2018 Pinheiro, Ineke e Cavalli deram continuidade ao trabalho, passando a trio, editando o disco “Triplicity”. E agora Pinheiro e Cavalli lançam um novo projecto, os dois músicos são a base de uma outra formação denominada New West Quartet. A estes juntam-se o baterista português Bruno Pedroso e o saxofonista americano John Gunther. O disco conta ainda com o convidado holandês Mike del Ferro, no piano. O grupo trabalha, de forma intercalada, temas originais (Gunther, Cavalli e Pinheiro cedem duas composições cada um) e alheios (duas revisões de clássicos). Como destaques naturais surgem os clássicos: “Bye-Ya” de Thelonious Monk (logo a abrir o disco) e “Moment’s Notice” de John Coltrane (na fase final do álbum), ambos em versões muito próprias. O grupo trabalha com tranquilidade um jazz moderno, com momentos de criatividade.

 


Troll’s Toy – “18:05”

(Edição de autor, 2019)

Oriundos de Aveiro, os Troll’s Toy são Gabriel Neves (saxofone tenor), Jorge Loura (guitarra barítono) e João Martins (bateria e percussão). O grupo apresenta-se de forma atrevida: “como seria se Frank Zappa, Wayne Shorter, Richard Wagner e Egberto Gismonti se encontrassem num concerto dos Tool”. O trio trabalha composições originais, que combinam esquizofrenia de Zappa com elementos jazzísticos, uma música que parte do rock para atravessar fronteiras de estilo. Os temas do trio exploram diferentes ambientes, e mesmo dentro de cada tema, encontramos diferentes mudanças de ritmo e direção. Saxofone e guitarra são os instrumentos representativos de dois géneros específicos, do jazz e do rock: aqui guitarra e saxofone encontram-se para dialogar de forma estruturada e bem articulada, bem apoiados por uma bateria que fornece o ritmo. Universos habitualmente distantes, o  jazz encontra o rock, numa música onde não faltam guinadas de surpresa. Altamente recomendado para fãs de Zappa e não só.

 


Luís Vicente / Vasco Trilla – “A Brighter Side of Darkness”

(Clean Feed, 2019)

Luís Vicente tem espalhado o seu talento em colaborações com inúmeros músicos nacionais e internacionais. O trompetista, compositor e improvisador tem colaborado com projectos como Fail Better!, Clocks & Clouds, Frame Trio, Vicente & Marjamaki, Twenty One 4tet, In Layers, Deux Maisons e What About Sam?, entre outros. Mais recentemente integrou um quarteto que juntou nomes históricos do free jazz, William Parker e Hamid Drake. Neste disco o trompete de Vicente encontra a percussão de Vasco Trilla, num encontro musical depido à essência. O baterista luso-catalão fornece um tapete percussivo, sobre o qual o trompete de Vicente voa livremente, ora exibindo o seu som quente, ora explorando sons criativos com recurso a técnicas extensivas.

 


Desidério Lázaro – “Homegrown”

(Sintoma, 2019)

A discografia de Desidério Lázaro – saxofonista, compositor e improvisador – não pára de crescer. Em 2018 o versátil saxofonista editou “Moving”, o seu quinto disco, onde afirmava a sua maturidade artística e qualidade decomposição. E agora, pouco tempo depois, chega este novo “Homegrown”. Neste disco o saxofone de Desidério conta com o apoio de um grupo alargado de músicos: João Firmino (guitarra), André Santos (guitarra), Ricardo Pinheiro (guitarra), Pedro Moreira (saxofone), Francisco Brito (contrabaixo), Cícero Lee (contrabaixo), Nelson Cascais (contrabaixo), Joel Silva (bateria) e Diogo Alexandre (bateria) – músicos que vão entrando e saindo consoante os temas. Em continuação de “Moving”, ouvimos uma música madura onde se destaca a qualidade da composição e a interpretação exímia, por um grupo de excelentes instrumentistas. Produção nacional de alta qualidade.

 


Jeffery Davis – “For Mad People Only”

(Porta-Jazz, 2019)

Nascido na Canadá em 1981, o vibrafonista Jeffery Davis vive em Portugal desde 1985. Tem colaborado em projectos como XL Trio, duo com Federico Casagrande (disco “The Settlement”), Kinetix Duo, Erro de Sintax, trio de percussão com Pedro Carneiro e Alexandre Frazão, entre outros. Em 2009 editou o disco “Haunted Gardens”, gravado em quarteto. O vibrafonista já tinha estebelecido uma parceria com o pianista Óscar Marcelino da Graça no projecto LiftOff, que editou o disco “Train of Thought”. Neste novo disco, edição Carimbo Porta-Jazz, a Davis e Graça juntam-se outros músicos nacionais: José Soares (saxofone), Francisco Brito (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria). As composições mostram originalidade e o quinteto desenvolve uma música metódica e envolvente. Destaca-se, com naturalidade, o vibrafone de Davis, pela sua expressividade e eloquência.

 


Jorge Nuno Connection – “São Paulo”

(Creative Sources / Big Papa, 2019)

Membro das bandas Signs of the Silhouette, Dead Vortex e Uivo Zebra, Jorge Nuno é um guitarrista português que tem desenvolvido o seu percurso na improvisação livre, por vezes ligado a um psicadelismo próximo do rock. Este disco é o primeiro de série de parceria com músicos de vários países. Gravado em São Paulo com músicos locais, o guitarrista português contou com a colaboração do trompetista Romulo Alexis, o vibrafonista Victor Vieira Branco e o percussionista Rafael Cab. O quarteto luso-brasileiro desenvolve uma música que parte de pontas soltas para encontar um caminho comum. Entre os laivos electrificados da guitarra, o trompete (e outros sons), o vibrafone e as percussões, o grupo encontra pontos de encontro. Venham daí as próximas edições da série.

 


Demian Cabaud – “Aparición”

(Porta-Jazz, 2019)

O contrabaixista argentino Demian Cabaud, residente em Portugal há vários anos, tem trabalhado regularmente com dezenas de músicos nacionais, incluindo a Orquestra Jazz de Matosinhos. Estreou-se como líder com o disco “Naranja” (2007), seguiram-se “Ruínas” (2010), How About You (2011) e “En Febrero” (2013). Em 2016 editou um dos melhores registos do seu percurso, “Off the Ground”, pela editora Robalo. Nos últimos tempos tem ano passado editou dois discos no Carimbo Porta-Jazz: “Astah” (quinteto com Ariel Bringuez, Xan Campos Jeff Williams e Iago Fernandez) e “A terra é de quem a trabalha”, duo de contrabaixo com o sueco Torbjörn Zetterberg. Já neste ano de 2019 volta a editar no mesmo selo este novo “Aparición”, desta vez acompanhado só por músicos portugueses: Ricardo Formoso (trompete), José Pedro Coelho (saxofone), João Grilo (piano) e Marcos Cavaleiro (bateria). “Aparición” é mais um volume sólido de um músico que fez de Portugal a sua casa. Cabaud apresenta um jazz sólido, guiado pelo seu contrabaixo que não se fica pela marcação rítmica e não esquece a melodia. O argentino está bem apoiado pelo grupo português, com uma dupla de sopros (Formoso e Coelho) que se destaca.