Sara Miguel e Tomás Marques celebram o jazz na Ilha Terceira

No dia 30 de Abril, Dia Internacional do Jazz, a Ilha Terceira vai acolher dois concertos para celebrar a efeméride: Sara Miguel canta Nina Simone e Tomás Marques Quinteto. Este evento é promovido pela Associação Cultural Angrajazz e os concertos terão lugar no Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo. O jovem saxofonista Tomás Marques, uma das grandes revelações do panorama jazz português (integra o projecto “Entre Paredes” de Bernardo Moreira), vai apresentar-se ao vivo liderando o seu quinteto. Neste grupo o virtuoso saxofonista tem a companhia dos músicos João Barradas (acordeão), Augusto Baschera (guitarra), Rodrigo Correia (contrabaixo) e Diogo Alexandre (bateria).

Na mesma noite a cantora Sara Miguel vai cantar a música de Nina Simone, apresentando ao vivo o projecto “A Voice for Freedom”. Para este projecto especial, a cantora Sara Miguel – voz da Orquestra Angrajazz e mentora do Bruma Project – estará acompanhada por Gonçalo Moreira (piano), Michael Ross (contrabaixo), Edmundo Diaz (audiovisual), além dos convidados Roberto Rosa (trompete) e Rui Melo (saxofone). Numa breve entrevista, Sara Miguel explica a sua profunda ligação com a música de Nina Simone e a homenagem que vai apresentar nos Açores.

Como chegaste à Nina Simone?
Apaixonei-me pela Nina Simone quase aos 20 anos – uma paixão tardia, já pouco adolescente, que prenunciava uma transformação em amor duradouro. Apaixonei-me por ela quando comprei o disco “The Very Best of Nina Simone”, uma antologia de 2006 que faz um resumo impossível da carreira estelar e gigante daquela mulher genial, lendária. Sou uma miúda de rádio, sempre fui – ninguém na minha família tinha ligação estreita com a música ou com músicos, os meus pais tinham poucas cassetes e discos em casa, não havia tradição de ouvir ou tocar ou ir a concertos frequentemente. Ouvia-se era muita rádio e os programas de música na televisão, e eu ouvia os autores clássicos que martelava nas aulas de piano, e gravava cassetes rafeiras com músicas do “World Chart Show” para levar nas viagens de carro estivais – é de adivinhar, portanto, que a minha passagem para o mundo musical digital e mais tarde para o streaming tenha sido muito natural. Antes de uma amiga me oferecer a colecção inteira da Blue Note que o marido tinha deixado ficar ao sair de casa, tinha muito poucos discos, todos eles muito especiais, porque só comprava aqueles que desejava muito ter – a antologia da Nina foi um deles.

Como evoluiu a tua relação com a sua música?
Foi através desse disco que comecei a conhecer uma das maiores artistas femininas de todos os tempos. Hoje, aos 32 anos e com a noção de que será sempre mais o que tenho a aprender do que o que já sei, consigo admirar ainda melhor o seu génio – é uma missão acessível a muito poucos ser-se tão versátil, tão completo, tão honesto, tão transversal, tão único e tão expressivo enquanto artista e acho que só acontece mesmo quando não o procuramos, quando ser assim é a única hipótese para continuar a respirar e a viver num mundo que nos fascina e nos destrói. O que mais me apaixona na Nina é mesmo a paixão dela; muitas vezes sou alvo de olhares de estranheza quando digo que não gosto de X artista ou de X cantora, especialmente quando são grandes referências do jazz ou da pop – justifico explicando que, para mim, um (grande) músico, um performer, um artista tem de arrepiar, tem de pegar no seu veículo artístico (seja musical, literário, plástico ou outro) e ligá-lo à corrente desenfreada das suas emoções/ideias/ideais para transformá-las numa linguagem diferente, mas ainda (mais) humana, ainda (mais) relacionável, com o poder absoluto de tocar fundo, inesperadamente! A paixão da Nina faz isso – quem a ouve pela primeira vez, aquela voz áspera e macia a um só fôlego, quase andrógina, quase sobrenatural, quase profética, fica sem ar durante uns segundos… a tentar identificar ou catalogar o que ouve, para que possa sossegar, compreender, mas sem sucesso… E depois continua a ouvir e – se tiver o coração no sítio certo – não pode ficar indiferente a uma artista que tão depressa canta um blues melífluo e insinuante, como uma canção easy, ritmada, com travo pop, como uma balada profunda de descolar o sangue das veias, como uma canção de protesto que nos põe a todos com vontade de correr para a rua e reivindicar o que quer que seja por que ela clama! E fazer isso com a classe, o virtuosismo, o engenho, a verdade e a criatividade com que ela o fazia, é inimitável, é digno de ficar para sempre esculpido na história da música, com admiração extasiada.

Como recebeste o convite para actuar no Dia Internacional do Jazz e porque escolheste a música de Nina Simone?
Quando surgiu por parte da Associação Angrajazz o convite para conceptualizar um concerto para a comemoração do Dia Internacional do Jazz na Ilha Terceira, pensei que tinha de ser esta a oportunidade para honrar a Nina – não a Nina sensual e consensual, mas a Nina cantora/autora de intervenção, menos conhecida e (ainda) mais intensa. Talvez há uns cinco anos atrás não tivesse a coragem ou a audácia de o fazer, temendo ficar aquém – hoje sinto que, sendo as comparações obviamente impossíveis e desnecessárias, o que verdadeiramente importa é que a Nina se volte a fazer ouvir uma e outra vez através de quem a queira encarnar, para que a sua mensagem continue a perpetuar-se pelas gerações que nunca a conheceram. E é ainda tão tristemente necessário! A Nina activista, que cantava em marchas pelos direitos dos negros, que gravava corajosas canções de protesto com palavrões e ataques claros ao governo e ao país, que não se furtava a lutar por aquilo em que acreditava mesmo perigando a sua carreira e a sua reputação, é necessária hoje de novo – era necessária uma legião de Ninas que cantassem as injustiças que ainda se vivem por todo o mundo, os atentados políticos e governamentais de tantos países em lugares decisores, as desigualdades gritantes que se atenuaram e agora parecem multiplicar-se de novo, alimentadas por uma liberdade que por décadas cresceu muito pouco libertadora e muito libertina. Hoje é de novo preciso protestar, alertar, manifestar, abrir os olhos com canções e por isso cada pessoa que traga a Nina na voz transforma-se numa nova voz pela liberdade, não de uma classe, não de uma nação, mas de muitas actuais e futuras gerações, de uma humanidade, de um planeta. Foi por isso, no fundo. Apaixonei-me pela Nina porque ela foi tudo o que era preciso ser muito à frente do seu tempo. E sofreu por isso. Hipotecou a sua paz por isso. Mas nunca desistiu e a sua música tem esse fulgor inebriante de quem sempre se levanta, essa promessa desafiante de quem nunca se demite e essa entrega dulcíssima de quem não sabe deixar de acreditar. Nem de cantar. Nem de (querer) ser livre.