Memória: Entrevista a Anthony Braxton

Compositor e saxofonista, o americano Anthony Braxton é uma verdadeira lenda viva da história do jazz.  Herdeiro da “Great Black Music”, prefere classificar o seu próprio trabalho como “música criativa”. Numa conversa de fim de tarde no anfiteatro ao ar livre da Gulbenkian, Anthony Braxton revela-se.

Quem foram os primeiros músicos que o levaram a ser músico?

Os primeiros músicos que tiveram impacto sobre mim foram Miles Davis, Dave Brubeck e Paul Desmond. Mais tarde fui influenciado pela grande música de Lennie Tristano e Warne Marsh, John Coltrane, Jackie McLean também foi importante, a grande música de Albert Ayler – estive muito atraído pela sua música. Foram principalmente os saxofonistas que mais me influenciaram. Também os meus colegas de Chicago, da AACM, a grande música de Roscoe Mitchell e Joseph Jarman foram certamente influências marcantes.

Acabou de referir John Coltrane e Albert Ayler. Na altura em que começava a tocar, Ayler e Coltrane tinham acabado de desaparecer. Alguma vez sentiu que poderia ser o seu sucessor?

Nunca estive a pensar em termos de ser o sucessor de alguém, queria apenas tocar a minha música da melhor forma que conseguisse. Nessa altura eu fui muito influenciado por esses saxofonistas, mas fui também muito inspirado pela tradição da música escrita – a grande música de Arnold Schöenberg, a grande música de Iannis Xenakis, Karlheinz Stockhausen, John Cage. Pela altura em que eu tinha dezassete/dezoito anos eu já sabia o que queria fazer e não estava a pensar em termos de suceder a alguém, queria fazer o melhor que conseguisse.

E desde então vem combinando na sua música todas essas ideias vindas da tradição do jazz com as concepções musicais dos compositores contemporâneos…

Sim. De facto eu não me considero um músico de jazz, estou só interessado em “música criativa”. Estava interessado na música enquanto trabalho de vida, enquanto trabalho espiritual, enquanto trabalho científico, enquanto trabalho emocional, enquanto trabalho psicológico, enquanto trabalho de pesquisa e desenvolvimento.

E depois destes anos todos de actividade enquanto músico, continua a pesquisar?

Sim, para mim a pesquisa é muito importante. Para mim é: um terço de música, um terço de escolaridade e um terço de pesquisa e desenvolvimento.

Falou há pouco dos músicos da AACM. Actualmente – depois de Sun Ra, Art Ensemble of Chicago – Chicago continua a ser uma grande cidade de jazz?

Já não moro em Chicago há cerca de vinte anos, talvez mais. Mas ao ouvir músicos como por exemplo Nicole Mitchell, que é uma das mais jovens descobertas a sair da AACM, fico com a ideia que a tradição continua a manter-se. De todas as indicações que vou recebendo fico com a ideia que a música continua muito viva em Chicago. Mas para mim nem por isso…nem consigo arranjar trabalho na minha cidade natal! Só na Europa! Na América odeiam-me! Dizem que a minha música não é negra, que não tem swing, dizem que é muito cerebral e que é muito difícil. Por isso, valha-nos a Deus pela Europa, sem a Europa não teria tido uma carreira enquanto músico. Até mesmo agora há pouco trabalho na América para mim…

Parece-me que essa já é uma questão histórica. Pelos mesmos motivos muitos músicos do free jazz mudaram-se da América para a Europa, na segunda metade dos anos ’60…

É a tradição. A tradição é que os músicos sérios vêm para a Europa. A América é muito complexa. Temos líderes estúpidos e agora estamos numa guerra estúpida [conflito Israel-Líbano] que não faz sentido algum. A América está em perigo e, a menos que alguma coisa mude, a América vai acabar por sofrer o destino de qualquer grande império.

Numa entrevista recente à revista The Wire fez uma ligação entre a perda de elementos exploratórios na música afro-americana com a extinção de pessoas negras na América. A música criativa é uma forma de sobrevivência neste mundo atribulado?

Penso que a criatividade é importantíssima. É tão importante para a nossa saúde como uma boa alimentação, como fazer exercício. A música é insubstituível. A música criativa é muito importante em qualquer período temporal, mas é especialmente importante nos tempos mais difíceis. A coisa mais maravilhosa da música é que ninguém é seu dono, a música vem de qualquer lado, de qualquer país, de qualquer período temporal. Eu vejo-me a mim próprio como um estudante, um estudante profissional de música. E continuo a aprender!

É um “estudante”, mas também lecciona na Wesleyan University. Como consegue conciliar a actividade educativa com as performances musicais?

Bem, como referi há pouco, para mim é um terço para a música, um terço para a escolaridade e um terço para a pesquisa e desenvolvimento. Para a parte escolar encontro-me a leccionar numa universidade e na música há sempre alguma coisa para aprender. Estou interessado na história da música, na ciência da música, na música electrónica, na ópera, na dança, na música solo, na teoria da música, na teoria da música criativa, na teoria da música tradicional… Quando se está na música de forma séria há sempre alguma coisa para aprender, há sempre alguma coisa nova para aprender na música. É por isso que gosto tanto da música! É mágica e há sempre algo mais a fazer!

Embora foque a sua produção em música original, alguns dos seus álbuns mais celebrados são tributos, como “Charlie Parker Project”, “Six Monk’s Compositions” ou “Standards (Quartet) 2003”. Esta é uma forma de incluir definitivamente o seu nome no caminho da tradição?

De facto, a música em que tenho trabalhado nos últimos quarenta anos não é uma rejeição da tradição, é uma afirmação da tradição! De vez em quando, de sete em sete ou dez em dez anos, toco alguma música tradicional. E eu adoro a música tradicional, desde que não tenha de a tocar demasiado, porque o que quero mesmo é tocar a minha música. Mas de vez em quando, aqui e ali, é bom tentar algo diferente, desde que não se intrometa demasiado no caminho.

O seu quarteto dos anos ’80 (com Gerry Hemingway, Mark Dresser e Marylin Crispell) é um dos seus grupos mais admirados. Costuma acompanhar as carreiras individuais dos músicos com quem trabalha?

Sim. Uma vez que os músicos vêm ter comigo passam a fazer parte da minha família e eu tento manter-me ligado àquilo que eles estejam a fazer, aprender com eles, manter uma ligação.

Já trabalhou com imensos músicos em muitos grupos diferentes, desde o trio com Leroy Jenkins e Leo Smith, até ao quarteto Circle (que incluía Chick Corea, Dave Holland e Barry Atschull), passando por muitos outros. De todos esses grupos com quem Tocou, qual é o seu preferido?

Não tenho nenhum grupo preferido. Excepto o grupo com quem toco agora, este sexteto é o meu favorito! Estou interessado no presente, olhando para o presente para fazer o melhor que conseguir. Estou muito feliz com os músicos com quem toco agora.

Li algures que tinha planeado um projecto em trio com William Parker e Milford Graves. Esse projecto já se concretizou, já tocaram juntos?

Já tivemos umas conversas, mas nesta altura ainda não está nada agendado. Eu, obviamente, admiro o Milford Graves. Há muitos músicos da minha geração com quem ainda não tive a oportunidade de tocar. Mas a minha esperança é que num futuro próximo seja possível colaborar num projecto com o William Parker e o Milford Graves. Pode até não chegar a acontecer, mas eu tenho muito apreço pela música deles.

Falando de projectos com outras pessoas, no ano passado actuou ao vivo com o grupo “noise” Wolf Eyes, em Victoriaville…

Eles são muito simpáticos, gostei muito deles!

Foi uma experiência extraordinária! O que o levou a actuar com eles?

Ouvi os Wolf Eyes na Suécia, há uns anos atrás. Eu tinha um concerto solo e eles tocavam no mesmo festival. Quando os ouvi eu disse “WWWOOOWWW, o que é isto???”… Adorei! Tive a oportunidade de os reencontrar no festival de Victoriaville e eles convidaram-me para tocar em eles. E eu aceitei logo.

Essa experiência poderá ser repetida?

Se aparecer alguma oportunidade eu faço-o! Eu gosto de noise!

Numa entrevista referiu que em toda a música exploratória há uma mudança gradual do individual para o galáctico. Como pode um simples músico tornar-se tão importante para todo o universo?

Estamos ligados ao universo de todas as formas. E parte do desafio da humanidade no terceiro milénio é encontrar unidade: unidade de nações, unidade de opostos, unidade do individual dentro do indivíduo. Penso no galáctico, penso na nova tecnologia e no trabalho da NASA, satélites que vão até Marte… Por aquilo que compete, a vida continua a ser milagrosa, a vida continua a ser misteriosa, é uma oportunidade maravilhosa para se estar vivo. E vai-se muito depressa! Um dos desafios da música criativa é fazer com que o desconhecido se manifeste, trazer o desconhecido até ao espaço já conhecido, mantendo o mistério.

Para a maioria das pessoas, a par de Ornette Coleman e Cecil Taylor, o Anthony Braxton mantém-se como um dos verdadeiros grandes gigantes do jazz…

Sou o último grande músico de jazz pobre!… [risos]

Da sua posição “pobre” mas privilegiada, como vê esta música no presente e no futuro?

Como referi há pouco, eu não estou interessado no jazz, estou só interessado na música criativa. Penso que o jazz foi óptimo para o século XX, mas agora estamos no século XXI. À medida que vamos avançando no tempo eu penso cada vez menos em jazz e penso cada vez mais em música criativa. O jazz tornou-se um espaço fechado, a música criativa não tem limites! Por isso, quando penso sobre o futuro eu não penso em idiomas, apenas penso em tentar aprender e evoluir o meu trabalho. Mas não é sobre jazz, não é sobre bossa nova, não é sobre hip-hop, não é sobre valsas… É sobre tudo aquilo com que o indivíduo se consegue relacionar, partindo desde um certo ponto e tentando evoluir.

Uma última questão: porque usa diagramas, notações matemáticas e científicas para organizar as suas obras, para nomear os seus trabalhos?

Porque o meu trabalho é mais do que simplesmente tocar música, é construir um sistema musical. O meu trabalho é construir aquilo a que chamo a unidade de pensamento Tri-Cêntrica. O sistema Tri-Cêntrico integra música, filosofia, emanações simbólicas rituais e ceremoniais. Dentro disto estou a tentar elaborar um contexto de experiências, um contexto de ideias e um contexto de simbolismos. Os títulos são parte disso, o sistema musical faz parte disso, o sistema poético faz parte disso… Tocar música, da maneira que vamos fazer esta noite, é apenas um aspecto daquilo que estou a tentar construir.

Entrevista realizada presencialmente em Agosto de 2006, publicada na revista Jazz.pt #9 (Novembro/Dezembro 2006).