Memória: A guitarra saturnina de Mary Halvorson

[Fotografia: Nuno Martins]

A guitarrista Mary Halvorson já não será uma surpresa para ninguém. O álbum “Saturn Sings”, de composições aventureiras, foi a confirmação definitiva de um talento da guitarra que não vai deixar ninguém indiferente. Começou por tocar violino, mas cedo mudou para a guitarra eléctrica. Teria uns onze anos: “Aborrecia-me tocar em orquestras e nunca gostei muito do violino. Nessa altura comecei a ouvir coisas como Jimi Hendrix e The Allman Brothers e decidi que queria tocar guitarra”. A chegada ao jazz não foi intencional: “o professor de guitarra era músico de jazz, por isso aconteceu por acaso. Além disso, o meu pai tinha muitos discos de jazz em casa e eu comecei a ouvi-los e a ficar interessada.” Desses primeiros discos que lhe chamaram a atenção, a guitarrista refere clássicos: “Kind of Blue” de Miles Davis, “Blue Train” de John Coltrane e uma compilação de Thelonious Monk.

Sobre guitarristas de jazz, houve um que se destacou nesse início: “hoje em dia não ouço muito, mas o Wes Montgomery foi o primeiro guitarrista de jazz que eu ouvi e que me conquistou. E sempre gostei do Jim Hall.” Anos mais tarde Halvorson foi beber a influência de Derek Bailey. “Comecei pelos clássicos e depois passei a explorar muito mais coisas. Acho que descobri o Derek Bailey na altura do final da escola secundária e adorei. Aliás, o primeiro disco do Anthony Braxton que comprei foi um duo com o Derek Bailey. Também li o livro dele, “Improvisation”, e ele foi sem dúvida uma grande influência.”

Quem ouça pela primeira vez a sua guitarra ficará surpreendido pelo seu som: um som especial, quente, mais cheio. Halvorson explica como chegou o conseguiu: “Embora eu toque guitarra eléctrica, eu queria que a guitarra tivesse uma “qualidade acústica”, gosto de ouvir as cordas, a madeira… Acho que isso deriva do facto de eu gostar muito do som do baixo eléctrico. Eu queria algo mais próximo desse som, por isso arranjei a maior guitarra que encontrei! Assim, tentei juntar esse lado acústico com o som do amplificador, para tentar chegar a um som mais seco, sem “reverb”. Gosto que o som seja muito claro.”

A guitarrista reconhece o papel decisivo que o encontro com Anthony Braxton teve na sua vida: “Conheci-o quando tinha 18 anos, estava numa idade muito impressionável, e ele mostrou-me muitas coisas, abriu-me muitas portas. Ele foi muito encorajador, apoiou-me muito e foi muito inspirador. Se não fosse ele, certamente não estaria a fazer aquilo que faço hoje. Por isso posso dizer que o Anthony Braxton foi o professor mais importante que já tive.” Além de Braxton, Mary Halvorson lembra ainda Joe Morris: “Foi meu professor de guitarra quando andava na faculdade e aprendi imenso com ele. Ele incentivou-me muito para fazer algo que fosse só meu. Além disso, o Joe é um dos meus guitarristas favoritos.”

É uma mulher num mundo do jazz dominado por homens. “Foi mais difícil quando comecei a estudar música, a aprender. Quando era adolescente não conhecia mais nenhuma rapariga que tocasse guitarra jazz. E foi mais difícil porque não havia nenhuma mulher que funcionasse de modelo no instrumento. Hoje em dia é mais fácil, conheço muitas mulheres que tocam jazz – a Ingrid [Laubrock] é um óptimo exemplo.”

Um dos seus projectos mais activos é um duo que mantém com a violinista Jessica Pavone. “A Jessica foi a primeira pessoa que conheci quando me mudei para Nova Iorque. Éramos vizinhas, tínhamos amigos em comum e começámos a tocar juntas. Foi algo que foi crescendo, as músicas evoluíram e nós continuamos a tocar, já há cerca de dez anos! Vamos agora editar o nosso quarto álbum. É uma instrumentação pouco comum, guitarra e violino, mas nós tentamos cruzar diferentes influências.”

Halvorson mantém um trio com John Hebért e Ches Smith. A escolha dos companheiros não foi por acaso. “Escolhi o Ches porque já tínhamos trabalhado junto, conheci-o através do Trio Convulsant do Trevor Dunn, e adoro o som dele.” A guitarrista não sabia quem havia de pôr no baixo, “mas assim que ouvi o John ao vivo (com o Andrew Hill e talvez com o Mat Maneri) e soube logo que era ele quem eu queria. Adoro o som do contrabaixo dele, é um grande músico, pensei que funcionaria bem no trio.”

Um dos projectos mais originais é o duo People, que a guitarrista mantém com Kevin Shea (bateria). “A banda já existe desde 2003, embora não toque não muita frequência. No início estava interessada em fazer canções e cantar. É um projecto muito engraçado e muito diferente do resto das coisas que faço. Aqui eu não improviso, só toco e canto aquilo que está escrito, ele é que improvisa o tempo todo. Recentemente acrescentámos um baixista, o Kyle Forester, e vamos editar um disco novo já em trio.”

A guitarrista integra também o grupo Anti-House da saxofonista Ingrid Laubrock. “A Ingrid mudou-se recentemente para Nova Iorque e eu conheci-a no Barbez, em Brooklyn. Ela apresentou-se, perguntou-me se eu queria tocar com ela e eu disse-lhe que sim. Eu adoro-a, ela é incrível, adoro a música dela, ela consegue ouvir tudo e tocar qualquer coisa. Senti uma ligação forte com ela e desde então temos tocado juntas em vários projectos: tocamos no trio do Tom Rainey, na banda dela Anti-House e agora ela vai entrar para a minha banda, que vai passar a septeto.”

Com o disco “Saturn Sings”, gravado com o seu quinteto, conseguiu alcançar a reverência da crítica. Para a guitarrista foi “a primeira tentativa de compôr para sopros e para uma banda com mais de três pessoas. Até agora, tinha composto quase sempre para o trio ou para o duo com a Jessica, por isso cinco pessoas parecia uma coisa difícil. Na altura em que estava a compor ouvia muito jazz e fiquei entusiasmada com a ideia de trabalhar harmonias para os sopros, bem como as harmonias em geral. Comecei a explorar e a experimentar e o resultado foi este disco!”

Além do sucesso da crítica, a própria líder do quinteto reconhece que este disco é especial: “Estou orgulhosa deste disco, gostei muito de o fazer. Diverti-me muito a compôr esta música, diverti-me muito durante todo o processo, adorei trabalhar com estes músicos.” Para o futuro está prevista a continuação: “acabámos de gravar um novo disco, com o mesmo quinteto, e tem sido divertido observar como a música vai evoluindo.” Mas os planos não se ficam pelo quinteto e já há ideias para um passo mais à frente: “a próxima coisa que irei fazer será adicionar mais dois sopros, a Ingrid Laubrock no saxofone e o Jacob Garchik no trombone, e vou tentar agora compôr para quatro sopros. É sempre giro expandir o grupo, juntar mais pessoas e ver onde isto vai dar. Vai ser como explorar territórios desconhecidos. E isso é óptimo.”

Durante os próximos tempos a guitarrista vai andar ocupada com o seu Trio, Quinteto e futuramente Septeto, o duo com Jessica Pavone, o quarteto The Thirteenth Assembly (com Jessica Pavone, Taylor Ho Bynum e Tomas Fujiwara), o (agora) trio People e o projecto Anti-House de Ingrid Laubrock, além de diversas colaborações em projectos alheios. Para o futuro Halvorson promete simplesmente: “continuar a evoluir, desafiar-me constantemente e encontrar sempre novas ideias.” Com este talento e criatividade, o futuro está do seu lado.

Depoimentos recolhidos em entrevista presencial realizada no dia 6 de Agosto de 2011. Artigo publicado originalmente na revista Jazz.pt #42.