Fundada no ano de 2001, a editora Clean Feed rapidamente conquistou o mundo. A label portuguesa afirmou-se de forma progressiva na primeira década do século XXI, sustentou e consolidou o prestígio ao longo desta segunda década de vida. Editou figuras lendárias (como Evan Parker, Peter Brötzmann e Joe McPhee), revelou formações que se afirmaram internacionalmente, deu palco a nomes consagrados do jazz português (Carlos Bica, Bernardo Sassetti, João Paulo Esteves da Silva, Sei Miguel) e foi lançando novos talentos nacionais (Hugo Carvalhais, Gabriel Ferrandini, Susana Santos Silva, Gonçalo Almeida, Ricardo Toscano, Mário Costa, etc.). Neste ano de 2021, assinalado o seu 20.º aniversário, a editora continua a alargar o seu vastíssimo catálogo, com uma atenção muito especial aos músicos nacionais. Entre a label principal (Clean Feed) e as sub-labels Shhpuma e Trem Azul, são vários os projectos editados por músicos portugueses dignos de nota. Entre o jazz, a música improvisada e todos os caminhos onde a exploração possa levar, a Clean Feed mostra a música do nosso tempo.
Hearth – Melt (Clean Feed)
A incansável Susana Santos Silva, que também lançou este ano o excelente disco Tomorrow em duo com o contrabaixista Torbjorn Zetterberg (edição do Carimbo Porta-Jazz), é uma das quatro integrantes deste supergrupo all-star que reúne quatro figuras de proa da cena improvisada europeia. A acompanhar o trompete da portuense estão as saxofonistas Mette Rasmussen e Ada Rave e a pianista Kaja Draksler. O quarteto trabalha uma improvisação fluída, com as quatro vozes instrumentais que vão cruzando ideias, provocando, desenhando ligações. Quatro improvisadoras em pico de forma, num disco que é uma maravilha de conversa musical.
Rafael Toral Space Quartet – Directions (Clean Feed)
Do Space Program de Rafael Toral resultou uma enorme discografia e esta formação surge também em continuação desse trabalho. Rafael Toral (amplificador, feedback) lidera aqui um grupo onde se faz acompanhar por Nuno Torres no saxofone e electrónica, Hugo Antunes no contrabaixo e Nuno Morão na bateria e percussão. O quarteto desenvolve uma música nova, onde a propulsão do jazz se encontra com a sonoridade eletrónica de Toral. Manipulado com agilidade, o feedback electrónico resulta estranhamente fluído, sugerindo diferentes caminhos e direções, muito bem apoiado pelo restante trio, que vai construindo uma rede de segurança jazzística. O encontro acaba por funcionar numa verdadeira conexão, daí resultando uma música que é surpreendentemente espacial.
Luís Lopes Lisbon Berlin Quartet – Sinister Hypnotization (Clean Feed)
Luís Lopes – Emmentes (Shhpuma)
Imparável, o guitarrista Luís Lopes tinha ainda editado recentemente o último registo do seu Humanization Quartet (grupo que esteve neste outono em tour pela Europa) e agora lançou quase em simultâneo dois novos registos. Lopes já tinha gravado dois discos em trio entre Lisboa e Berlim (com Robert Landfermann no contrabaixo e Christian Lillinger na bateria) e agora alarga a formação deste projecto, transformando-o em quarteto, com a adição do pianista luso Rodrigo Pinheiro (aqui em versão elétrica, no Fender Rhodes). Se, com o Humanization, Lopes se aventura por um jazz-rock-free desgarrado, nesta aventura luso-alemã explora caminhos de improvisação mais aberta, igualmente enérgica. Sinister Hypnotization surge na continuação lógica do trabalho do Lisbon-Berlin Trio, mantendo as caraterísticas base e expandindo a paleta sonora, usando Pinheiro como joker.
Em paralelo, Luís Lopes revela uma outra faceta musical, mais escondida, igualmente interessante. Em 2016 Lopes tinha editado o disco Love Song, uma exploração de guitarra acústica, a solo, revelando um universo mais pessoal e lírico. O novo Emmentes surge em continuação, no mesmo tipo de registo, lírico, pausado, pensado, com espaço. Cada nota é atacada com gravidade e sentimento, uma faceta completamente oposta ao habitual Lopes elétrico (dos Humanization Quartet e Lisbon-Berlin). Dois discos, duas facetas que se complementam.
The Selva + Machinefabriek – Barbatrama (Shhpuma)
Ritual Habitual – Pagan Chant (Clean Feed)
Gonçalo Almeida é um notável contrabaixista português, radicado em Roterdão, que se desdobra em múltiplos projectos e colaborações. No trio The Selva encontrou um dos seus projectos âncora, onde a improvisação é a chave – em parceria com Ricardo Jacinto no violoncelo e Nuno Morão na percussão. Neste disco Barbatrama a música do trio The Selva é manipulada e trabalhada por Machinefabriek (alias do artista sonoro neerlandês Rutger Zuydervelt) e o resultado não é a típica improvisação livre, é algo novo e surpreendente. Os sons gravados pelo trio são isolados, transformados, recondicionados, e daí nasce algo com outras formas. Não é a música que conhecíamos do projecto The Selva, é algo diferente e novo. E é óptimo.
Num registo diferente está o grupo Ritual Habitual, numa abordagem assumidamente jazzística, próxima do free jazz. Além de Almeida, o trio completa-se com Riccardo Marogna (saxofone tenor, clarinete baixo e sintetizadores) e Philipp Ernsting (bateria). Este “canto pagão” evoca as características da fire music (na sua era dourada, entre os fins de 1960’s e início dos 1970’s). Destaca-se o fulgor coltraneano de Marogna, bem acompanhado pela pujança de Almeida e Ernsting, que alimentam um fogo contínuo.
Garfo – Garfo (Clean Feed)
Se nos últimos anos se muito tem falado nas novas gerações do jazz português, este disco revela uma “novíssima” geração. Quatro jovens músicos portugueses apresentam-se ao mundo com música original, um jazz que bebe da tradição mas tem ideias frescas e mostra querer seguir em frente. Estão aqui Bernardo Tinoco (saxofone), João Almeida (trompete), João Fragoso (contrabaixo) e João Sousa (bateria), músicos que começam a mostrar-se em diversos contextos. O jovem quarteto explora diferentes ambientes – entre momentos de puro jazz clássico, até situações de mais liberdade exploratória – e exibe uma primorosa qualidade técnica. O futuro é deles.
Luís Vicente Trio – Chanting In The Name Of (Clean Feed)
O trompetista Luís Vicente tem sedimentado um percurso magnífico, alimentando colaborações que se reflectem numa discografia vasta, repleta de ligações com nomes internacionais. Agora, Vicente aposta num formato simples – o trio – e escolheu como parceiros dois músicos portugueses. A aposta terá resultado, uma vez que este talvez seja, do seu extenso percurso, o registo mais focado e interessante. O trompete de Vicente tem a companhia do contrabaixo de Gonçalo Almeida (o mesmo dos grupos The Selva e Ritual Habitual) e da bateria de Pedro Melo Alves (Omniae Ensemble, The Rite of Trio, entre outros) – dois instrumentistas de recursos amplos e que, reconhecidamente, dominam diferentes linguagens. O trio desenvolve uma música que, partindo de composições originais, tem o seu eixo na improvisação ancorada no jazz. Os três instrumentistas navegam à vontade, em segurança, explorando caminhos, sem perder o norte. Ao longo de cinco temas o trio Vicente/Almeida/Melo Alves pratica um diálogo em modo jazzístico onde não sobram pontas soltas, onde cada um dos instrumentistas se evidencia. Destaque para o tema-título, interpretado com uma toada quase religiosa.
Pedro Melo Alves Omniae Large Ensemble – Lumina (Clean Feed)
The Rite of Trio – Free Development of Delirium (Clean Feed)
O mesmo Pedro Melo Alves é um dos músicos que mais se tem feito notar neste ano de 2021. Além da participação no trio de Vicente, editou discos de dois projectos que lidera, além de estrear um duo com Pedro Carneiro. Com a primeira versão do seu Omniae Ensemble (disco editado em 2017, pela Nischo) revelou-se como compositor fora-de-série: aqui, Melo Alves expande a formação e retrabalha as mesmas composições de base, mas reinventando-se. Agora, conta com o apoio do maestro Pedro Carneiro na condução, além de ter alargado o leque de músicos para expandir a paleta musical numa direção mais exploratória. O disco é também revelador da expansão do próprio universo musical de Melo Alves – já sabíamos que o tínhamos de ter em atenção, agora confirmou-se definitivamente como um dos músicos mais versáteis e criativos da nossa praça.
Essa versatilidade confirma-se com a edição do segundo disco do grupo The Rite of Trio. Melo Alves é um dos três eixos – além de Filipe Louro no contrabaixo e de André B. Silva na guitarra (também mentor do projeto The Guit Kune Do). Os The Rite já tinham surpreendido a cena nacional com o disco de estreia em 2016, e agora já não serão surpresa, confirmam-se de vez, numa peça original sobre loucura e delírio – inspirada na Carta Aberta… Aos Poderes de Antonin Artaud. Rock, jazz e free, tudo fragmentado, tudo mesclado, pós-Zappa e pós-Zorn, sem medo da vertigem.
Pedro Carneiro & Pedro Melo Alves – Bad Company (Clean Feed)
Carlos Zíngaro & Pedro Carneiro – Elogio das Sombras (Clean Feed)
Maestro, director da Orquestra de Câmara Portuguesa e extraordinário vibrafonista, com um percurso assinalável no universo da música contemporânea, Pedro Carneiro tem também explorado a improvisação livre e estes dois registos são a prova de uma curiosidade sem limites, particularmente notável para um músico que sai da sua zona de conforto e desbrava caminhos. Em duo com o jovem Melo Alves, Carneiro enceta um diálogo instrumental atípico, espécie de música contemporânea de câmara.
O veterano Carlos Zíngaro não é só uma figura histórica da improvisação portuguesa, continua a ser um mestre da improvisação sem rede. Em duo com Carneiro, Zíngaro volta a exibir a sua enorme musicalidade, desenhando ideias, dialogando com o vibrafone. A dupla desafia-se, dialoga, desenha melodias, desconstrói e reinventa. Elogio das Sombras é uma obra prima contruída por dois mestres da música portuguesa.
Afonso Pais – O que já importa (Trem Azul)
Guitarrista com percurso ligado ao jazz, Afonso Pais tem aqui um objecto estranho, onde faz uma exploração de instrumentais, à volta de guitarra, com o apoio de um trio de vozes (Margarida Campelo, Luísa Caseiro e Nazaré da Silva), além de João Hasselberg (baixo elétrico) e João Correia (bateria). O resultado é cativante, abordagem original que por vezes soa bluesy; e em alguns momentos lembra a parceria João Hasselberg & Pedro Branco (onde Pais é peça central). Destaca-se o tema “Conforto”, que conta com a participação de Capicua.
João Lencastre’s Communion – Unlimited Dreams (Clean Feed)
Baterista de vastos recursos, João Lencastre tem explorado o universo da improvisação livre em paralelo com um sólido percurso na exploração de diversas formas de jazz. Ao leme do seu grupo Communion (formação que tem acolhido diferentes músicos em diferentes momentos), Lencastre apresenta um jazz original, sempre apoiado por músicos de reconhecido mérito. Desta vez reúne um octeto, onde junta a elite de músicos nacionais (Ricardo Toscano, André Fernandes, Pedro Branco, João Hasselberg e Nelson Cascais), ao lado de Albert Cirera e Benny Lackner. O grupo interpreta as composições de Lencastre com precisão, combinando as diversas camadas, num desafio laborioso. O anterior disco de Lencastre, Parallel Realities (que partilhou também com Cirera, Branco e Hasselberg), mostrava uma música original, sem fronteiras nem rede. Este novo Unlimited Dreams continua a carregar essa identidade, agora num ambiente marcadamente jazzístico, igualmente desafiante.
LUME – Las Californias (Clean Feed)
O projector L.U.M.E. (acrónimo para Lisbon Underground Music Ensemble), liderado por Marco Barroso, é um dos mais originais e criativos projectos ligados ao jazz nacional. Desde o seu surgimento, esta formação mostrou alguma da música mais original feita em Portugal, cruzando universos, desafiando geografias sonoras e cruzando estéticas. Em 2010 o grupo editou o seu álbum de estreia, homónimo, via JACC Records, que foi alvo de uma segunda edição em 2013, pela editora Challenge; o segundo disco chegou em 2016, pela Clean Feed: Xabregas 10. Cinco anos depois, chega o terceiro registo, mantendo as mesmas características. Neste terceiro disco Barroso (composição, direção e piano), tem a companhia de Manuel Luis Cochofel (flauta), Paulo Gaspar (clarinete soprano), João Pedro Silva (sax soprano), Tomás Marques (sax alto), Mateja Dolsak (sax tenor), Elmano Coelho (sax barítono), Sergio Charrinho, Jessica Pina e Ricardo Carvalho (trompetes), Rúben da Luz, Eduardo Lála e Mário Vicente (trombones), Miguel Amado (baixo elétrico) e Vicky Marques (bateria). A big band pós-moderna trata de interpretar as composições esquizofrénicas de Barroso com alta intensidade, fazendo nascer um jazz rebelde que desafia convenções.
Este notável pacote de discos de produção nacional é reveladora não só da enorme quantidade de projectos nacionais, como a excelente qualidade do produto português. A Clean Feed faz 20 anos, mas quem faz a festa somos nós, de cada vez que escutamos um destes discos. Obrigado, Clean Feed.