Nascido em plena pandemia, o festival O jazz tem voz! revelou-se um sucesso logo nessa primeira edição em outubro de 2020. Neste ano de 2021, o festival organizado pela promotora Clave na Mão repetiu a fórmula, apresentando um programa com nomes fundamentais do jazz nacional na zona da Graça, em Lisboa. Nos dias 9 e 10 de outubro o festival levou concertos ao Largo de Santa Marinha, na parte da tarde: no dia 9 actuou o Pedro Moreira Sax Ensemble, com o disco Two Maybe More, recentemente editado; no dia 10 tocou o trio de Beatriz Nunes, Paula Sousa e André Rosinha, apresentando o álbum À Espera do Futuro (espetáculos que não tivemos oportunidade de assistir).
Já no segundo fim-de-semana, nos dias 15, 16 e 17 o festival mudou-se para A Voz do Operário. Na noite de sexta-feira actuou a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM) com o convidado João Paulo Esteves da Silva. A orquestra gravou com o pianista o disco Bela Senão Sem, que foi editado originalmente em 2013 (e considerado um dos melhores desse ano para o jornal Público). Agora reeditado, o registo conta com a inclusão de três temas extra, três gravações de João Paulo a solo. N’A Voz do Operário a orquestra arrancou a actuação com o tema “Candeia” (que foi mesmo à frente): desde logo a OJM mostrou a sua enorme qualidade, organização, dinâmica e vibrante pujança colectiva; e ainda deixou espaço para o piano do convidado brilhar. Ao segundo tema, o convidado João Paulo mudou de instrumento, serviu-se do acordeão para interpretar o tema que dá nome ao disco. Seguiu-se “Moché Salyo de Misraim”, tradicional serfadita com arranjos de Esteves da Silva, espécie de hino épico que, com a força da orquestra, vê ampliada a sua gradiosidade religiosa. Destaque ainda para “Canção açoreana” (original do pianista, com espírito das “Ilhas de Bruma”), “Fantasmas” (enérgica improvisação colectiva) e “Certeza” (original de Esteves da Silva, apresentada por Pedro Guedes como “um standard do jazz português”, a fechar o concerto). Da formação da OJM que actuou n’A Voz faziam parte nomes grandes da cena jazz portuense, como João Pedro Coelho, João Guimarães e Mário Santos (saxofones), Ricardo Formoso (trompete), Nuno Ferreira (guitarra), Marcos Cavaleiro (bateria) e um estreante Filipe Louro (dos The Rite of Trio, que acabam de lançar novo disco).
O dia de sábado arrancou com a actuação da Orquestra Gerajazz (às 11h00); à noite, A Voz do Operário acolheu um reencontro há muito aguardado: o trio de Mário Laginha voltou a juntar-se em palco com a cantora Maria João, após vários anos sem colaborarem. O público percebeu a dimensão do evento e respondeu à chamada, esgotando os bilhetes. O concerto arrancou apenas em trio, com Laginha (piano), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria) a exibirem o seu altíssimo nível técnico. De seguida a cantora subiu ao palco. Apenas em duo, Mário Laginha e Maria João trataram de interpretar um dos temas mais simbólicos e do seu vasto repertório: “Parrots and Lions”. O piano desenhava as linhas melódicas e a voz, primeiro distante, fazia crescer a canção. O espectáculo atravessou diferentes momentos da história Laginha/João e não faltaram temas como “Há gente aqui”, “Sete facadas”, “A lua partida ao meio” ou “Sweet suite”. O piano de Laginha mostrou o seu brilhantismo, contrabaixo e bateria mostraram a sua precisão; e a voz de Maria João voltou a brilhar a grande altura, exibindo-se, a cantar com e sem palavras, no scat, no vocalese, em múltiplos registos, a improvisar, a desconcertar. Perante um público que já estava conquistado à partida, o quarteto tratou apenas de fazer o que lhe competia – dar vida a músicas que já fazem parte de um património colectivo – cumprindo com a mestria habitual. No final ficou apenas a faltar “Beatriz”, a magnífica versão que se qualifica para suplantar o original – ainda foi pedida por várias pessoas, para o encore, mas os músicos não acederam.
Na manhã de domingo o festival promoveu uma actuação do Isabel Rato Quinteto – concerto comentado para famílias. O festival fechou no final da tarde de domingo com a actuação do projecto Duplex, de Ricardo Toscano e João Barradas. Toscano (saxofone alto) e Barradas (acordeão) são dois jovens valores da cena jazz nacional, músicos virtuosos que se destacaram desde muito cedo. Em 2017 apresentaram-se em quarteto no Festival Antena 2 acompanhados por André Rosinha (contrabaixo) e João Pereira (bateria), a interpretarem exclusivamente standards jazz. Em 2020, Toscano e Barradas estrearam este projecto em duo, saxofone e acordeão em diálogo, trabalhando sobretudo composições originais. O saxofone alto de Toscano exibe a sua agilidade, o acordeão (sobretudo o tradicional, mas também o acordeão midi) de Barradas mostra a sua versatilidade. Ao longo de cada composição, saxofone e acordeão discursam, criam ambientes, lançam ideias e entrelaçam as vozes. Além das composições originais (de Toscano e Barradas, alternadas), a dupla atacou dois standards: “Well you needn’t” (de Monk) e “If I should lose you”. Foi precisamente neste último que a dupla revelou mais entrosamento: saxofone e acordeão mostraram-se perfeitos, revelando não apenas na sua primorosa qualidade técnica mas também num perfeito diálogo e interação.
Em 2020 o nascimento deste festival O jazz tem voz! revelou-se como uma luz de esperança para um sector cultural fragilizado, particularmente para o universo precário do jazz nacional. A solidez desta segunda edição, focada em dar palco a músicos portugueses, confirmou a pertinência e relevância do festival.