Ao vivo: A Voice for Freedom @ Theatro Circo

O Theatro Circo, em Braga, acolheu no dia 11 de Dezembro o espectáculo A Voice for Freedom, protagonizado pela cantora Sara Miguel. O espectáculo nasceu de um convite que a Associação Angrajazz lançou à cantora, para assinalar o Dia Internacional do Jazz, e Sara Miguel criou um espectáculo de homenagem à lendária Nina Simone (1933-2003), particularmente focado na sua faceta activista.

Nascida no Porto e licenciada em Canto Jazz na ESMAE, Sara Miguel lançou em 2012 o seu disco de estreia, Monção, gravado em quarteto. Em 2014 mudou-se para os Açores, tendo vivido na Ilha Terceira e reside actualmente no Pico. Colaborou com a Orquestra Angrajazz, tendo actuado no festival de jazz de Angra do Heroísmo por diversas ocasiões. Em 2018 editou o disco de estreia do Bruma Project, onde propõe uma revisitação jazzística de temas açorianos, integra o trio Mar&Ilha (com Jorge “Canarinho” Silva e Marcos Fernandez) e o duo Blackbird, em parceria com o guitarrista João Belchior, que editou no início deste 2020 o seu EP de estreia (Becoming).

Perante uma plateia muito bem composta (tendo em conta as limitações da pandemia), a cantora fez-se acompanhar em Braga por um verdadeiro grupo all-star, reunindo alguns dos melhores músicos nacionais da cena jazz: João Mortágua (saxofone alto), Javier Pereiro (trompete), Gonçalo Moreira (piano), Michael Ross (contrabaixo) e Mário Costa (bateria). A música seria complementada com a projecção de imagens, da responsabilidade de Edmundo Díaz Sotelo e Eddie Oleque.

O espectáculo abriu com a interpretação de “To be young, gifted and black”, um dos temas mais conhecidos de Simone. A banda segura, a voz sólida. Desde logo, nota-se a evidente diferença nos registos vocais da homenageada e da homenagem – o que não é nenhum problema, porque isto não é um concurso de imitação, é um assumido tributo com personalidade. Após a entrada enérgica, o ritmo abranda com a abaladada “Lilac wine” (também popularizada por Jeff Buckley, que a levou a outros públicos). Segue-se “Be my husband” numa versão despida, apenas a voz a capella e palmas em fundo, na marcação do tempo. Com “Ain’t got no, I got life”, a banda volta com toda a pujança: contrabaixo e bateria na estabilidade rítmica, piano nas pinceladas harmónicas, e os sopros, saxofone e trompete, expressivos nos sublinhados melódicos.

A cantora contextualiza, dá informações sobre a vida de Nina Simone, sobre o seu envolvimento no movimento dos direitos civis, sobre o racismo. E no alinhamento seguem-se temas onde a mensagem é mais explícita. “Strange fruit” é um dos temas mais emblemáticos do seu cancioneiro, tendo sido também gravado por Billie Holiday, e aborda explicitamente o linchamento de negros. Além da qualidade vocal e do sentimento da canção, as imagens projectadas de homens negros mortos pendurados em árvores (“estranhos frutos”) amplificam a sensação de choque que já está presente na música. Seguem-se outros temas intensos: “Work song”, “Four women”, “Mississippi goddam” (outro momento mais marcante) e “Backlash blues”. Sempre em crescendo.

A interpretação vocal é irrepreensível, com Sara Miguel a assumir a sua personalidade musical cada vez mais à vontade, à medida que o espectáculo avança, brilhando particularmente nos momentos de mais energia. A banda exibe eficácia e, além do acompanhamento, sabe acrescentar qualidade nos momentos a solo – notáveis os solos de João Mortágua no saxofone e Javier Pereiro no trompete. Para o encerramento ficou reservada “I wish I knew how it would feel to be free”, que conquistou definitivamente o público, até cantou. A plateia despediu-se com uma ovação em pé, entusiasmada e merecida. A cantora e a banda regressaram para o encore, primeiro com “Everything must change” (apenas piano e voz) e a despedida final chegou com “Feeling Good” (nova ovação.)

Neste espectáculo a voz de Sara Miguel exibiu ao vivo a sua enorme qualidade e amplitude, adaptada à especificidade da homenagem. A riqueza e potencial vocal de Sara Miguel têm sido expostos em diferentes contextos, particularmente no seu projecto de originais Blackbird. Depois do sucesso desta homenagem, que merece ser levada a muitas mais cidades portuguesas, ficamos a aguardar novos projectos, que também não esqueçam a ligação ao jazz.

No final do espectáculo, entre o burburinho da saída, uma figura ligada à cena jazz confessava: “gostei muito, mas houve muito proselitismo…” Num espectáculo sobre a faceta activista da lendária cantora, numa época em que racismo está na ordem do dia, neste momento em que as sombras do fascismo se aproximam sem vergonha, a evangelização seria inevitável. Aliás, quando se trata de direitos humanos e igualdade, a evangelização nunca é demais. Quando a música se pode associar e ajudar a difundir a mensagem, ficamos todos a ganhar. Que aí venham mais vozes pela liberdade.