Beats For Peeps é um novo projecto nacional dedicado ao jazz e à música improvisada. Com autoria de João Morado, este projecto consiste em dois formatos, podcast e blog, revela atenção aos novos lançamentos e tem mostrado especial interesse com a música criada em Portugal. Numa pequena entrevista, Morado apresenta esta sua iniciativa.
Como e quando nasceu este projecto?
O Beats For Peeps nasceu da fantasia de fazer rádio, algo que já vinha a cultivar desde a minha adolescência. Como tenho muitas ligações à cidade de Coimbra, sempre pensei vir a juntar-me à RUC – uma rádio que sempre me apaixonou pelo ecletismo e qualidade da música – quando entrasse na faculdade. Porém, a vida levou-me a estudar no Porto, o que fez com que nunca lograsse concretizar esse desejo. Para além disso, saí de Portugal muito cedo, com 22 anos, para seguir os meus estudos e carreira na ciência, o que ainda dificultou mais as coisas. No entanto, como sempre explorei, ouvi e li muito sobre música, esse desejo nunca se desvaneceu, tendo vindo, por fim, a concretizar de uma forma completamente independente e do it yourself, comigo a gravar os podcasts em casa, com recurso a um microfone e a uma interface áudio. Por outro lado, o foco no jazz e na música improvisada prende-se ao facto de este ser um dos géneros que sempre me interessou e ao qual retorno vezes sem conta. Ao longo da minha vida já explorei imensos universos musicais, do rock ao hip-hop, do blues ao metal, do folk à world music; porém há dois polos em que, sobretudo, muita da minha pesquisa se centra, que são o jazz/música improvisada e a música brasileira.
Porquê este nome, Beats for Peeps?
O nome surgiu de uma forma muito natural, enquanto estava a conversar com um amigo acerca das ideias que tinha para o podcast. Às tantas, no meio da discussão, saiu-me o nome Beats for Peeps, do qual gostei imediatamente por causa da fonética – tem uma rima apelativa e da qual gosto bastante! Para além disso, numa análise posterior e mais racional, acho que o nome se adequa ao projecto porque, se nos remete, imediatamente, para um universo musical, não o fecha em si mesmo, pois não o restringe a um único género musical ou conceito. Desta forma, creio que se adequa totalmente ao espírito do projecto: se o ponto focal do Beats for Peeps é o jazz e a música improvisada – sonoridades que têm associado, implicitamente, um espírito de liberdade e descoberta -, faz todo o sentido que o nome não seja muito restritivo. Enfim… pensamentos a posteriori que, na verdade, não influenciaram a escolha inicial do nome.
Qual o objectivo e missão deste projecto?
Essa é uma pergunta muito interessante porque tenho de admitir que os objectivos se foram moldando à medida que o projecto foi evoluindo e, certamente, não serão os mesmos daqui a uns meses. Tudo começou porque, aliado à vontade de fazer rádio, tinha também o desejo de manter um registo e arquivo de toda a música que escutava e da pesquisa que fazia sobre esta. Simultaneamente, queria explorar um pouco mais sobre a história e enquadramento da música que ouvia e que, na minha opinião, é algo inextricável da experiência sonora, sendo um lado que, muitas das vezes, é menosprezado. Interessantemente, à medida que fui publicando os podcasts, comecei a ter algum feedback positivo sobre o trabalho que estava a desenvolver, o que fez com que percebesse que o projecto poderia, não só, preencher os meus impulsos egoístas, como também ser útil para outras pessoas. Isso motivou-me a começar a procurar rádios onde o podcast pudesse tocar, sendo que objectivo era chegar ao maior número possível de ouvintes. Para além disso, quando percebi que o Beats for Peeps poderia ter também uma dimensão educativa e de divulgação, não hesitei em começar a publicar críticas a álbuns, algo que já vinha a fazer há algum tempo na minha privacidade. É por estas linhas que, actualmente, se rege o meu trabalho e nas quais pretendo continuar. Acima de tudo, é um trabalho de pesquisa, interpretação e divulgação, que me dá assaz prazer realizar, pois tenho um gosto enorme em escrever e divulgar a música que me inspira e que, muitas vezes, penso não ter a expressão merecida.
Até agora tens estado focado sobretudo em música portuguesa. É uma tendência para continuar?
Sim, sem dúvida. Quer os programas de rádio quer as críticas não se restringem apenas ao jazz e à música improvisada que se faz em Portugal. No entanto, tenciono, indubitavelmente, que este seja o panorama com mais representatividade no Beats for Peeps, quer pela forte e óbvia ligação que tenho ao país, quer pela qualidade da música que aí se faz, que penso que poderia alcançar ainda mais públicos. Acima de tudo, quero escrever sobre a música que gosto e apoiá-la. Por exemplo, como vivo no Reino Unido, tenho-me, também, focado bastante na cena de jazz daqui, que já há vários anos que está a fervilhar e que eu acompanho. Contudo, também tenho de esclarecer que não tenho o acesso que gostaria ao jazz português, visto que só muito recentemente é que consegui estabelecer alguns contactos que me disponibilizam os lançamentos da cena nacional. Apesar disto, em muitos casos, ainda estou limitado ao que está disponível em plataformas digitais, o que, frequentemente, impossibilita certas abordagens escritas aos discos ou à sua inclusão nos programas. Por exemplo, há muita coisa que gostava de poder ouvir na totalidade mas que, ou não está de todo disponível, ou apenas parcialmente. Eu compreendo integralmente o lado dos músicos, que são profissionais e que vivem através da sua arte. No entanto, apesar de comprar imensa música todos os meses, com toda a certeza, ouço ainda mais do que a que compro, e seria ilusório fantasiar em adquirir todos os discos pelos quais me interesso porque, infelizmente, não teria capacidade financeira para tal. Esse trabalho de estabelecer pontes e contactos que me permitam ter acesso a mais música é um processo que ainda está em curso.
O teu percurso profissional está ligado à investigação científica. Como surge a ligação à música? Para te apresentares, podes indicar cinco discos que reflictam o teu gosto pessoal?
Realmente, à primeira vista, pode parecer que é uma ligação algo inusitada. Desde criança que quis ser cientista, tendo sido nessa direcção que a minha vida acabou por se desenvolver a nível académico. Sinceramente, penso que os motivos que me propulsionam a explorar a ciência são similares aos que me levam a explorar a música, nomeadamente uma curiosidade insaciável e a necessidade de sondar o desconhecido. No limite, existem até pontes bastante concretas entre as duas disciplinas, que, aliás, foram brilhante e elegantemente descritas por Xenakis, no seu livro Formalized Music, onde apresenta um formalismo matemático para a modelação da música. Por outro lado, comecei a aprender guitarra clássica e a ter aulas de formação musical com quatro anos, ao qual se seguiu uma adolescência em que aprendi bateria e, mais recentemente, piano clássico. Não me considero um músico, mas já toquei com muita gente e em várias bandas, principalmente de rock, blues e metal. Também estou associado a alguns projectos de electrónica e hip-hop onde exploro o gosto pela produção e pelas máquinas porque tenho vários samplers e sequenciadores com os quais gosto de brincar. Infelizmente, e com muita pena minha, não sei tocar jazz, mas tenho a vertente de ouvinte. É difícil nomear 5 discos porque as minhas influências estão em constante mutação, mas aqui vão alguns que me marcaram:
Max Roach – It’s Time: É um disco fabuloso, com arranjos fabulosos e uns coros de uma beleza extraordinária. Para além disso, conta com a maravilhosa voz da Abbey Lincoln no tema “Lonesome Lover”, que eu acho incrível. O We Insist! do Max Roach também é um disco muito bom, com características semelhantes – e até foi melhor recebido pela crítica -, mas eu, pessoalmente, gosto mais do It’s Time.
The Peter Brötzmann Octet – Machine Gun: O primeiro álbum de free jazz que me recordo de ouvir foi o Love Cry do Albert Ayler. Anos mais tarde, tive contacto com o trabalho do Peter Brötzmann através de um concerto do seu projecto Full Blast, o que me estimulou a explorar a sua discografia e a conhecer este álbum. Bem… o que dizer? É um disco brutal, na mais crua ascensão da palavra, e um trabalho seminal, ao qual é impossível ficar indiferente.
Mostly Other People Do The Killing – The Coimbra Concert: Esta escolha não se prende ao disco em si, mas ao facto de ter estado presente no gig e deste ter mudado totalmente a minha perspectiva sobre o jazz. Na altura, tinha 18 anos e, apesar de ouvir jazz, as minhas influências vinham muito mais do rockabilly, rock psicadélico e do metal. Porém, os Mostly Other People Do The Killing deram um concerto de (free) jazz com atitude punk, o que, naquele momento, fez todo o sentido para mim. Para além deste, outro disco da Clean Feed que me influenciou bastante foi o Live in Ljubljana da Adam Lane’s Full Throttle Orchestra.
Bach – Variações Goldberg: Para além de ser, provavelmente, a obra mais conhecida de Bach, é, também, a minha favorita. Tive contacto com as Variações Goldberg através do livro O Náufrago, de Thomas Bernhard, que li durante a adolescência e me marcou profundamente. É um livro que conta uma história (fictícia) sobre um trio de alunos de Vladimir Horowitz no Mozarteum de Salzburgo, entre os quais o Glenn Gould, indiscutivelmente o melhor intérprete desta obra. Portanto, se as Variações forem tocadas por ele, ainda melhor!
Lula Côrtes e Zé Ramalho – Paêbirú: Este disco é uma obra-prima da música brasileira, que funde elementos experimentais e de psicadelismo a uma génese folk e de música tradicional brasileira. A este trabalho poderia juntar álbuns do Tom Zé, Novos Baianos, Tim Maia, Gal Costa, Tincoãs, Azymuth, entre tantos outros nomes que me fascinam. Isto para dizer que a música brasileira é um vastíssimo poço sem fundo que não me canso de descobrir.
Neste momento o Beats For Peeps está funcionar em podcast e blog, e tem página Instagram. Tens ideias de outros formatos, rubricas ou projectos, no futuro?
Essas são as plataformas onde o projecto existe actualmente: os episódios passados do programa estão disponíveis no Mixcloud, sendo que os alinhamentos destes e as críticas a álbuns são publicadas no blogue www.beatsforpeeps.me. Ademais, o Instagram é usado como forma de divulgação do conteúdo, pois permite que a informação chegue a mais pessoas. Porém, para já, não tenho planos para mais formatos ou rubricas porque, para além deste projecto me consumir bastante tempo e não ser a minha actividade principal, já existem plataformas portuguesas que fazem um trabalho excelente à volta do jazz e que eu respeito e sigo com atenção. Talvez fizesse sentido um dia tentar contactar certos músicos para uma entrevista, visto ter imensas questões e tópicos que gostaria de abordar. Gostava, inclusivé, de poder contribuir para outras publicações que pudessem, eventualmente, estar interessadas no meu trabalho. Veremos… o importante é fazer as coisas com calma, prazer e intencionalidade.