Ao Vivo: Angrajazz 2017


Yilian Cañizares [Fotografia: Jorge Monjardino]

Chegado à sua 19ª edição, o festival da Ilha Terceira manteve a habitual coerência na programação, apresentando uma linha programática focada num jazz “mainstream”, sem esquecer propostas mais arrojadas, mas acessíveis. A edição de 2017 do Angrajazz, que decorreu entre os dias 4 e 7 de Outubro no Centro Cultural e de Congressos, seguiu a tradição da sua linha estética, não faltando a habitual presença de um/a cantor/a e, num gesto de diferença, apresentando duas propostas mais próximas da música latina. Este ano o evento arrancou mais cedo, a 29 de Setembro, com o ciclo de concertos “Jazz na Rua” a antecipar as quatro noites do programa oficial. Foram três os projectos musicais que actuaram em diversos locais da cidade de Angra do Heroísmo, levando propostas de jazz a locais populares, com entrada livre. Nesta iniciativa participaram o duo Mano a Mano, dos irmãos André e Bruno Santos, e dois projectos de músicos que integram a Orquestra Angrajazz: Wave Jazz Ensemble e Sara Miguel Quarteto.

Não tivemos oportunidade de acompanhar todos os grupos, mas assistimos ao concerto de Mano a Mano no café Verde Maçã, ao fim da tarde do dia 4 de Outubro. Com um disco acabado de editar – simplesmente “Mano a Mano, Volume 2” – e antecipando uma digressão nacional que vai culminar no CCB, em Lisboa, a dupla de guitarristas madeirenses levou ao simpático café a sua interpretação pessoal de “standards”, temas brasileiros e originais (pontuais). A dupla enlaça as guitarras na construção dos temas – quando um dos irmãos assume o papel secundário (rítmico e harmónico) o outro fica em destaque, com a responsabilidade do desenho melódico e campo aberto para solar, numa partilha de responsabilidades que vai sendo alternada ao longo do concerto. De “Without a Song” até clássicos MPB como “Modinha” e “Carta ao Tom 74”, incluindo uma passagem de André com a braguinha (espécie de cavaquinho madeirense) em dois temas, a dupla apresentou uma interpretação irrepreensível de temas clássicos. Só foi pena algum ruído, natural do espaço, que perturbou a música.


Baptiste Trotignon & Minimo Garay [Fotografia: Jorge Monjardino]

O programa oficial abriu na noite de quarta-feira, véspera de feriado, com a actuação da Orquestra Angrajazz. Projecto-símbolo do festival, a orquestra funciona como projecto pedagógico e todos os anos integra o cartaz. Na edição de 2016 apresentou uma aprumada interpretação da “Far East Suite” de Duke Ellington, pelo que o programa para este ano despertaria natural curiosidade. Para este festival a “big band” focou-se em cinco músicos que neste ano de 2017 celebrariam 100 anos: Tadd Dameron, Ella Fitzgerald, Thelonious Monk, Lena Horne e Dizzy Gillespie. O concerto abriu com “Ladybird” (Dameron) e, entre outros clássicos, ouviram-se “A Night In Tunisia” (Gillespie), vários Monks (“Bemsha Swing”, “I Mean You” e “Epistrophy”) e “Sweet Georgia Brown”. Além de todos os instrumentais, houve também espaço para temas cantados, que contaram com a participação de Sara Miguel – cantora natural do Porto, radicada na Ilha Terceira há alguns anos. Sob a direcção de Claus Nymark e Pedro Moreira (também no saxofone tenor), a orquestra exibiu a competência que já se tornou imagem de marca, com um som colectivo sólido. Os solos foram globalmente interessantes, mas a prestação valeu sobretudo pela óptima dinâmica de grupo.

A primeira noite fechou com a dupla franco-argentina Baptiste Trotignon & Minimo Garay. O francês Trotignon (piano) e o argentino Garay (percussão) apresentaram um jazz de travo sul-americano, fazendo jus ao disco “Chimichurri” (Okeh, 2016). A rítmica criativa do argentino fez-se notar desde logo, não só pela dinâmica musical, como também pela sua enorme expressividade (servindo-se do próprio corpo como objecto de percussão). O pianista foi o parceiro ideal, exibindo uma sensibilidade latina e muito enérgica. O duo desenvolveu uma música apimentada e assente num ritmo alucinante. Teve apenas uma quebra, quando o francês atacou uma balada num solo belo e memorável. Embora não se tratasse propriamente do nosso estilo de música favorito, há que reconhecer a transbordante entrega dos músicos, que foi justamente reconhecida pelo público, completamente convertido.


Charles Tolliver Tentet [Fotografia: Jorge Monjardino]

Na noite de quinta-feira, dia de feriado da Implantação da República, o festival acolheu apenas a actuação do Charles Tolliver Tentet. O trompetista já tinha apresentado esta recriação do disco “The Thelonious Monk Orchestra at Town Hall 1959” em 2009, por ocasião do 50º aniversário do original, e repescou o projecto a propósito da celebração do centenário de nascimento de Monk (a data exacta foi no dia 10 de Outubro). O veterano trompetista Charles Tolliver liderou o grupo de dez elementos. O pianista originalmente previsto, Stanley Cowell, foi substituído por Kirk Lightsey – em boa hora, uma vez que este se mostrou o elemento mais irreverente do grupo. Além de um piano interessante, foi impecável na comunicação com o público, contrastando com a sobriedade do líder.

A música teve início com um solo de piano de Kirk, passou a trio (com contrabaixo e bateria), depois a quarteto (com a entrada do saxofone) e finalmente chegou o grupo completo. O decateto interpretou a história recriando os mesmos exactos arranjos e a opção não funcionou bem. Inovadores na época, os arranjos não têm a mesma força meio século depois. E, sobretudo, a dinâmica do grupo não justificou o investimento na empreitada – houve competência e profissionalismo, mas sem qualquer fulgor. Verificaram-se alguns pontuais destaques individuais, como o saxofonista Stephen Gladeney e o trombone de Stafford Hunter, com solos dignos de registo. Já a presença de Tolliver pareceu meramente decorativa – apenas um solo no trompete, breve e desinteressante. Na apreciação global, a música soou geralmente sensaborona e pouco interessante. Foi pena: Thelonious Monk merecia uma homenagem com música mais viva.


Matt Wilson [Fotografia: Jorge Monjardino]

A noite de sexta-feira, dia 6, abriu com o Ensemble Super Moderne, vindo da cidade do Porto. O octeto assentou a sua música num originalíssimo trabalho de composição e arranjos, que envolve todo o grupo. A prestação foi altamente criativa e desafiante, marcada pelas constantes quebras de ritmo e pelas mudanças bruscas de sentido e direcção. A interpretação foi irrepreensível e o grupo mostrou a sua excelente dinâmica, com todos os músicos a revelarem concentração, atentos a todas as guinadas que a composição obriga. Instrumentistas consagrados como José Pedro Coelho (saxofones), Carlos Azevedo (piano) ou Miguel Ângelo (contrabaixo) contribuíram especialmente para a força do colectivo – sempre coeso, sempre vibrante. O concerto passou por temas originais como “La Capricciosa”, “Modern” ou “Ninja’s” e fechou com a “A Última Canção de 2013”. Apesar de esta música não ser propriamente acessível, a fantástica actuação foi reconhecida pelo público, que aplaudiu sem reservas.

Para o segundo “set” da noite ficou reservado o norte-americano Matt Wilson Quartet. Começou com um inusitado “drum roll” por Wilson, espécie de gesto circense a anunciar o arranque da performance. A banda liderada pelo baterista Wilson junta Jeff Lederer (saxofones), Kirk Knufke (trompete) e Chris Lightcap (contrabaixo) – todos músicos com trabalho reconhecido no jazz contemporâneo, em nome próprio ou na condição de “sidemen”. O quarteto apresentou um jazz maduro mas aceso, com intervenções marcantes, sobretudo por parte dos sopros. O baterista também se fez notar, com intervenções precisas. O concerto abriu com “Arts & Crafts” (do disco homónimo, de 2001), seguindo-se um conjunto de temas fortes, interpretados com alta intensidade. O tema “Pee Wee’s Blues”, homenagem a Pee Wee Russell, contou com o convidado surpresa Jon Irabagon (que tocaria com o seu grupo na noite seguinte), numa participação breve mas marcante. Para o final ficou “Man Bun” (poderemos referir semelhanças com o clássico juvenil “Blister in the Sun” dos Violent Femmes?). Wilson, sobretudo na parte final, também se mostrou muito comunicativo com o público, exibindo um bom humor.


Jon Irabagon [Fotografia: Jorge Monjardino]

O Angrajazz teve a sua conclusão na noite de sábado com uma dose dupla. De Cuba, Yilian Cañizares trouxe uma música latina pouco comum no programa do festival. Poucos dias antes, Cañizares tinha confessado na sua conta de Instagram que não fazia ideia onde iria tocar e que teve de ir ao Google Maps ver onde ficava o festival. Agora, muito provavelmente não esquecerá onde fica a Ilha Terceira. A actuação recolheu o maior aplauso de todo o festival e a cantora não se cansou de referir a simpatia das pessoas, as paisagens e, como não podia deixar de ser, a comida. Ainda que o jazz seja a mais aberta das músicas, disponível a todas as contaminações, a música de Cañizares não se enquadra propriamente na categoria, ainda que não se possa ignorar o sentimento desta música, impecavelmente executada e com alma. Cañizares, na voz e no violino, exibiu a sua qualidade técnica e muita elegância, apoiado por uma banda sólida e irrepreensível. O público respondeu com muito entusiasmo, naquele que terá sido o concerto favorito de todo o festival.

Esta 19ª edição não poderia terminar de melhor maneira. O Jon Irabagon Quartet foi responsável pela despedida e tratou de confirmar as elevadas expectativas. O saxofonista fez-se acompanhar por Luis Perdomo (piano), Yasushi Nakamura (contrabaixo) e Rudy Royston (bateria). Esperava-se que o concerto tivesse por base os temas do disco “Behind the Sun”, mas acabou por incluir temas novos de um álbum a ser publicado muito em breve, denominado “Dr. Quixotic’s Traveling Exotics”. O grupo exibiu um jazz fogoso, com o saxofone tenor enérgico de Irabagon sempre sustentado por uma secção rítmica trepidante. Na forma de um jazz contemporâneo e intenso, esta performance mostrou que o jazz actual, vivo e criativo tem lugar nos festivais e consegue chegar às pessoas.

Texto publicado originalmente no site Jazz.pt:
https://jazz.pt/report/2017/10/12/ficou-no-google-maps/