A minha vida num disco

19 de Junho de 2003: Tinha acabado de chegar da praia e, num gesto instintivo, criei um blog onde iria começar a escrever sobre música. Não tinha pensado num título e, naquele momento, escolhi sem pensar muito: “A Forma do Jazz”. Na altura não se vivia a febre dos blogs, estavam a aparecer os primeiros, e comecei a escrever sobre jazz. Sem grande planeamento, criei o primeiro blog de jazz em Portugal. Foram surgindo alguns seguidores, comecei a ser convidado para escrever noutras publicações, esse momento marcou o início de um percurso profissional na escrita sobre música. Obviamente, a inspiração para o título desse blog foi o disco “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman, que em 1959 anunciou ao mundo a revolução do jazz livre. Não só porque gostava muito daquela música, e pelo simbolismo daquele jazz libertário, mas também por causa da força daquele título.

Com seis discos editados num curto período de tempo, entre 1958 e 1960, o saxofonista Ornette Coleman desafiou o “status quo” da cena jazz, desafiando e quebrando convenções. Os seus discos já tinham títulos fortes, que transmitiam a sua mensagem de mudança na forma da música: “Something Else!!!!” (1958), “Tomorrow Is the Question!” (1959), “Change of the Century” (1959), “This Is Our Music” (1960) e “Free Jazz” (1960). Contudo, o título “The Shape of Jazz to Come” era ainda mais impactante: um prenúncio de futuro, mudança, evolução. Editado no ano de 1959, “The Shape of Jazz to Come” (ed. Atlantic) não só é um manifesto musical, como é uma pérola na discografia de Ornette. A acompanhar o seu saxofone alto está um grupo de excelentes músicos: Don Cherry (trompete), Charlie Haden (contrabaixo) e Billy Higgins (bateria). Já essa formação era atípica, sem instrumento harmónico (piano ou guitarra), como era habitual.

O quarteto trabalha sobre uma ideia radical para a época: parte das composições de Coleman para depois improvisar livremente, com a dupla de sopros a trabalhar espontaneamente sobre uma base rítmica flexível, regressando à melodia apenas no final. Um som mais cru, também mais intenso. Mais do que caos, o que se ouve é uma enorme energia e uma beleza rara (“Beauty is a rare thing” é outro belo título de Ornette). Acima de tudo, destaca-se o tema de abertura: “Lonely Woman”, magnífica melodia original de Ornette que conseguiu atravessar meio século sem uma ruga, irresistível naquela entrada zizezagueante (sem dúvida, uma das músicas da minha vida). Há ainda a velocidade vertiginosa de “Eventually” e a melodia memorável de “Peace”. Outros temas magníficos completam o álbum: “Focus on Sanity”, “Congeniality” e “Chronology”. Tudo irrepreensível, desde a dinâmica dos sopros de Coleman e Cherry, até ao vibrante apoio da secção rítmica de Haden e Higgins.

Vi o Ornette Coleman ao vivo uma vez em Lisboa, quando veio tocar ao festival Jazz em Agosto em 2007. Com a ajuda de uma amiga da produção, tive a sorte de assistir ao “soundcheck”: o grande auditório da Gulbenkian fechado, só eu, técnicos de som e os músicos. Sentei-me lá no meio, quietinho, para não perturbar. Ornette soprou o saxofone alto e deixou-me arrepiado. Fiquei ali, sozinho, a ver durante alguns minutos um dos últimos gigantes da história do jazz, em absoluto exclusivo. À noite o concerto cumpriu as expectativas, Ornette até tocou a belíssima “Lonely Woman”. Ornette Coleman morreu em 2015. Não lhe cheguei a agradecer.

Texto publicado originalmente no site LookMag:
http://lookmag.pt/blog/minha-vida-num-disco-nuno-catarino/