Memória | Entrevista: Joe McPhee

O norte-americano Joe McPhee é uma das figuras de proa do jazz e das músicas livres das últimas décadas. Esta entrevista foi realizada em Lisboa em Agosto de 2008, aquando da passagem do Peter Brötzmann Chicago Tentet pelo festival Jazz em Agosto, tendo sido posteriormente publicada na revista Jazz.pt. 

Tocou no Jazz em Agosto com o Brötzmann Chicago Tentet, um grupo de grande dimensão. Tem sido fácil tocar com todos estes grandes músicos, ao longo de todos estes anos?
Bem, eles têm confiança em mim e deixam-me fazer aquilo que eu gosto. É uma organização de improvisadores incríveis e seres humanos fantásticos, é um espaço muito aberto. Eles confiam em mim e há confiança mútua entre todos. É assim que a banda funciona, baseada na confiança e no respeito mútuo.

Entre tantos músicos com personalidade forte, não se verificam conflitos?
Não e não sei se isso não será uma coisa única, mas é certamente uma coisa muito especial com esta banda e justifica o porquê de continuarmos juntos passados todos estes anos. A banda não sofreu alterações (salvo uma ou outra mudança por motivos pessoais). Não há problemas com egos e isso é uma das principais razões para continuarmos.

Alguns dos meus discos favoritos dos anos recentes são as suas gravações com os The Thing e com os Cato Salsa Experience, em que tocam versões free jazz de temas rock. Como é que os The Thing o conseguiram convencer a tocar canções rock?
O Mats [Gustaffson], o Paal Nilssen-Love e o Ingebrit Haker-Flaten têm um “background” musical rock, cresceram a ouvir essa música. Conheci o Mats quando entrei para o Tentet, estabelecemos uma boa relação e ele convidou-me a tocar com os The Thing. O meu “background” vem do jazz, mas também da soul e do rock, por isso para mim foi fácil adaptar-me à música do grupo. Eles têm uma energia imensa e parte daquilo que o jazz é vai buscar a outros lugares, para transformar noutra coisa. Eu gosto muito de tocar com eles.

Um dos seus discos mais importantes é o “Nation Time”, de 1971, que apresentou uma música quase revolucionária. Acredita que a música pode contribuir para a (r)evolução?
Na altura eu andava a tocar com uma banda de soul chamada Ira and the Soul Project e alguns músicos que participaram no disco faziam parte dessa banda. Nessa altura estávamos a assistir ao movimento dos direitos civis na América, que contribuiu para uma certa revolução cultural, e o próprio título está directamente ligado a esse movimento – o título “Nation Time” veio de um discurso de Amiri Baraka (na altura acho que ainda usava como nome LeRoi Jones). Na altura vivia-se um período revolucionário e a do “Nation Time” música acaba por reflectir esse espírito.

Diz-se que o Amiri Baraka não gostou muito da música desse disco…
Sim, foi isso que ouvi dizer, mas ele nunca mo disse directamente. Talvez ele tenha pensado que eu estava a usar as suas palavras com um intuito comercial, não sei… Nem sei se isso será a verdade mais exacta.

Toca principalmente saxofone tenor e pocket trumpet, mas também tem tocado vários outros instrumentos. Porque decidiu escolher tocar tantos instrumentos de sopro diferentes?
Comecei por tocar trompete aos 8 anos porque o meu pai, que era trompetista, me convidou para tocar com ele. Durante vinte anos dediquei-me exclusivamente ao trompete e aos 28 decidi tocar saxofone, porque ouvi o Albert Ayler e aquela era a música mais extraordinária que já tinha ouvido na vida. Mas antes disso já andava interessado na música de gente como John Coltrane, Sonny Rollins, Ornette Coleman e Eric Dolphy, pensei que os saxofonistas eram aqueles que faziam a música mais “importante”. É verdade que haviam trompetistas muito bons, como Freddie Hubbard e Miles Davis, na altura também já ouvia Bill Dixon, mas os saxofonistas eram aqueles que mais me chamavam a atenção. E como o som não é produzido pelos lábios, mas pela palheta, permite produzir um som mais intenso e tocar por um período de tempo muito mais prolongado, porque a certa altura os lábios não aguentam.

Como toma a decisão de optar por um determinado instrumento para um determinado momento, para uma determinada música?
Tudo depende do contexto, da música. Para o Brötzmann Chicago Tentet fui convidado para tocar metais, por isso toco principalmente trompete e trombone de vávulas. Também tenho comigo o saxofone soprano, mas eles já têm quatro saxofonistas, não precisam de outro. A escolha do instrumento depende principalmente do contexto e da banda. Nos The Thing o Mats toca saxofone barítono, eu tenho liberdade para escolher qualquer instrumento, desde que faça sentido no momento. E às vezes escolho ao calhas e digo “é este!”

O Joe McPhee tem-se focado numa teoria chamada Po Music. Quais são os conceitos que estão na origem desta teoria?
Esta teoria vem de um livro de Edward De Bono e o conceito tem a ver com fazer escolhas. Por exemplo, estás a conduzir numa estrada em direcção ao sul e chegas a um ponto em que tens de fazer um desvio para norte, e nesse desvio descobres outras possibilidades. Manténs em mente o destino para onde queres ir, mas por esse desvio descobres outras coisas, nesse processo aprendes coisas novas, que te ajudam ao longo da viagem. O que eu “peço emprestado” ao Dr. De Bono são as possibilidades, aplicadas à música. A palavra “Po” vem de “possibilidade” e não é nada muito teórico ou complexo, tem a ver com descobrir algo novo e o caminho para lá chegar. E acho que isso tem a ver com a minha música, tem a ver com o facto de eu tocar com músicos de origens muito diversas. Se eu toco com uma banda rock não quero que me chamem “músico de jazz”, prefiro ser classificado simplesmente de “músico”. Eu posso tocar com músicos muito diferentes e nesse processo estou a aprender coisas novas e, espero também, acrescentar algo novo.

Para além de ser músico, desempenhou durante vários anos o cargo de vice-presidente da editora Hat Hut. Ao desempenhar essas funções ficou com uma perspectiva mais alargada sobre o mundo do jazz?
Nem por isso… Eu fui vice-presidente para a área do marketing e promoção, mas era mais um cargo simbólico que outra coisa. Eu não era o dono da empresa, não tinha poder nas decisões importantes. Mas deu-me uma oportunidade para aprender o que é o “negócio” do jazz e isso foi importante, porque eu era muito näif… Foi uma aprendizagem, mas não foi muito importante.

Enquanto músico, como vê o jazz no mundo actual?
Depende onde se está. Numa perspectiva global, parece-me que os músicos estão a viver um período complicado, em termos de gravações, uma vez que o mercado de CDs teve uma quebra enorme. Em termos de criatividade, acho que existe uma atitude muito conservadora da parte de muitos músicos, uma atitude que se reflecte globalmente, em termos de política, estilo de vida… Mas as coisas mudam, amanhã as coisas podem estar melhores… Por exemplo, em Nova Iorque as coisas estão más, há poucos sítios para tocar. É um período de desafios.

O facto de tocar com músicos muito diferentes é também uma estratégia de aprendizagem?
É uma boa oportunidade para aprender, aprendo imenso com as pessoas com quem toco, descubro que as pessoas com quem toco me trazem sempre coisas novas. Tenho imenso prazer em conhecer pessoas novas, novos instrumentos, novas ideias.

Questionado sobre a sua música, Anthony Braxton disse numa entrevista que já não estava interessado em jazz, que só lhe interessava falar em “música criativa”. Qual a sua opinião quanto a esta questão?
A minha opinião não difere muito da opinião do Anthony. Para mim “jazz” é um rótulo, é uma caixa grande onde cabe muita coisa, não é uma descrição correcta daquilo que nós fazemos, podemos chamar-lhe qualquer coisa. Em geral concordo com aquilo que o Anthony diz.

A par de Anthony Braxton, Evan Parker e Peter Brötzmann, o Joe McPhee é reconhecido com um dos músicos mais importantes do nosso tempo, é uma referência para os jovens músicos. Como lida com o facto de ser um ícone
(Risos) Para mim é engraçado ouvir isso… Não é algo em que tenha pensado… Se é verdade e há pessoas que me consideram como influência, fico feliz por isso. Acho fantástico que os miúdos descubram música que gravei há trinta anos atrás, como o “Nation Time”.

Está a par de novos músicos? Quem são os músicos jovens que lhe têm despertado a atenção?
Um músico que descobri recentemente, num festival em França, foi Taylor Ho Bynum – acho-o um músico fantástico. O pessoal dos The Thing [Mats Gustaffson, Paal Nilssen-Love e Ingebrit Haker-Flaten] são mais novos que eu e são incríveis. Há imensos, não me lembro dos nomes, mas há imensa gente a aparecer.

O Jumala Quintet editou o disco “Turtle Crossing” através da Clean Feed. Há planos para outros discos? 

Para já não há nada em específico, mas mantenho o contacto com o Pedro Costa. Fui convidado para actuar em Coimbra com o Trio X [com Dominic Duval e Jay Rosen], por isso pode ser que surja alguma coisa…

Estava prevista a sua participação numa conferência designada “The Changing Scene”. Qual considera ser actualmente o principal vector de mudança da “cena” musical? Poderemos falar na internet por estar a mudar definitivamente as formas de negócio?
Antes de mais queria pedir desculpa por não ter comparecido à conferência, houve um atraso com o vôo e não consegui chegar a tempo. Respondendo à pergunta, acho que a internet é uma parte muito importante nesse processo de mudança. Estou curioso quanto à nova realidade dos downloads, em vez da cópia física da música. A internet possibilita que muito mais pessoas, um pouco por todo o mundo, tenham acesso à informação e à música que produzimos. Mas também há uma nova geração que se interessa por ter um objecto físico, quer seja em CD ou em vinil. Para já a internet está a mudar o modelo de negócio e é uma situação complicada, porque os músicos têm de investir mais nos concertos. Não sei o que vai acontecer, mas vai acontecer alguma coisa, porque a mudança é essência daquilo que o jazz é.

Será que a música é mesmo “tão séria como a sua vida” (“as serious as your life”)?
(Risos) Para mim não pode ser de outra forma. A música é a minha vida e eu levo-a muito a sério. E eu levo as ameaças à minha vida muito a sério, por isso tenham cuidado… (Risos)

Discografia seleccionada:
Joe McPhee – Nation Time (Atavistic, 1971)
Joe McPhee & John Snyder – Pieces of Light (Atavistic, 1974)
Joe McPhee – Black Magic Man (Hat Hut, 1975)
Joe McPhee – The Willisau Concert (Hat Hut, 1977)
Joe McPhee – As Serious As Your Life (Hat Hut, 1996)
The Thing w/ Joe McPhee – She Knows (Crazy Wisdom, 2001)
Jumala Quintet – Turtle Crossing (Clean Feed, 2005)
Cato Salsa Experience & The Thing w/ Joe McPhee – Sounds Like a Sandwich (Smalltown, 2006)
Joe McPhee & Paal Nilssen-Love – Tomorrow Came Today (Smalltown, 2008)
Joe McPhee – Flowers (Cipsela, 2016)
Rodrigo Amado / Joe McPhee / Kent Kessler / Chris Corsano – A History of Nothing (Trost, 2008)