Compositor e improvisador, José Valente tem desenvolvido o seu trabalho à volta da viola d’arco. No seu mais recente projeto, Trégua, Valente encetou uma colaboração inédita, em parceria com uma orquestra filarmónica. Numa pequena entrevista, José Valente apresenta este trabalho.
Este disco Trégua marca o encontro da viola d’arco com uma orquestra filarmónica. Como surgiu a ideia para este trabalho?
O meu fascínio pelo universo das bandas filarmónicas portuguesas começou em criança, quando assistia aos despiques entre as bandas de Ancede e Santa Marinha do Zêzere em Baião, a terra onde o meu pai nasceu, nas Festas de São Bartolomeu. Outra experiência determinante para o meu interesse por este tipo de agrupamentos, foi um concerto no qual fui solista, juntamente com o Paquito d’Rivera, o seu quinteto da altura e uma big band composta por jovens músicos provenientes de todos os cantos do mundo, no Carnegie Hall. Foi uma vivência fantástica, tanto do ponto de vista humano como musical. Por outro lado, em 2018, fruto dos vários processos criativos e peças concluídas até então, apercebi-me que a minha orientação artística poderia crescer para algo mais significativo do que uma mera expressão da minha inquietação e observação do mundo. Nasceu assim um novo estímulo, uma consequência natural do facto de eu utilizar muitos vocabulários e géneros musicais na minha obra: compor e construir circunstâncias alternativas, divertidas, estranhas, exuberantes, se calhar extravagantes e definitivamente provocadoras, para o meu instrumento – a viola d’arco. Depois do lançamento de Serpente Infinita compreendi que o meu próximo disco teria que ser para um ensemble. Não só para evitar rótulos estéticos ou formais (que detesto), como para evitar a preguiça criativa. Quando soube que o Henrique Portovedo é o maestro da Orquestra Filarmónica Gafanhense, fiz-lhe o repto. O Henrique já estava a fazer um trabalho relevante com a Orquestra, a elaborar contextos musicais diferentes da tradicional postura popular que define a maioria das bandas filarmónicas, propondo repertório mais ousado e contemporâneo, por exemplo. Pareceu-lhe, e com razão, que um encontro entre estas duas realidades bastante distintas, coincidia com os objetivos de evolução do conjunto. Estava previsto, no início, apenas fazer um concerto comigo, acompanhado pela Filarmónica. Contudo, tendo em conta que eu estava a compor um disco para um ensemble, porque não elevar a fasquia do desafio e compor, orquestrar e preparar um disco para viola e uma banda filarmónica? Quando esta ideia se fixou na minha cabeça, eu só encontrava vantagens: o acesso a um grande desafio artístico; realizar uma verdadeira intervenção política, pedagógica e artística no seio de uma comunidade; desenvolver conhecimento inédito; crescer enquanto músico e pessoa.
Que ideias musicais guiaram a conceção e concretização deste trabalho? Como se aproximam universos sonoros afastados?
Em primeiro lugar há, neste projeto, uma intenção nítida de aproximação. Neste ponto de vista, Trégua é o resultado de uma ação política. Política mas não partidária. Política porque a concretização do próprio projeto incentivou uma série de encontros e desafios que, sem esta intervenção, nunca aconteceriam. Motivar o contacto entre corpos distantes é uma forma de construir linguagem e, depois, comunicação. E é nessa comunicação que começam a surgir novas descobertas e entendimentos. Vivemos numa época em que há cada vez menos diálogo ou compromisso. A sociedade receia conversar sobre opiniões distintas, receia qualquer tipo de confronto. Incutem-se conceitos redutores como a hegemonização da língua, dos modos de vida etc. tudo em prol de uma fictícia facilitação para o entendimento. Vivemos dentro de um regime que nos vende constantemente uma sensação falsa de liberdade. É uma liberdade equivocada. Numa entrevista sobre Trégua afirmei: “Bem-vinda a dúvida”. A dúvida, não é somente bem-vinda enquanto catalisadora da curiosidade. Esta é a principal defesa contra a liberdade equivocada, contra a opressão imposta pela ditadura das certezas que têm medo de descobrir o estranho. Depois há uma ligação conceptual entre Trégua e Serpente Infinita. Em Serpente Infinita, a reflexão filosófica baseou-se na interpretação do quotidiano enquanto estupefaciente que nos anestesia perante o absurdo da vida. Camus, n’O Mito de Sísifo explica: quando há o despertar da consciência, o ser humano depara-se com o absurdo que é a sua vida (e dos outros). Restam então duas resoluções: o suicídio ou o restabelecimento. No caso de Serpente Infinita, o ramerrão diário é entendido como uma forma de pesadelo, como algo aterrador. Logo, Serpente Infinita é pautada por uma sensação de desilusão e desistência. Já em Trégua, a reflexão incidiu sobre o restabelecimento. A partir de uma variante muito sedutora: o riso. A festa, a gargalhada, a boa disposição, além de essenciais para o restabelecimento, para o nosso bem estar, são instrumentos de subversão. Porque são momentos inesperados que desestabilizam o nosso dia-a-dia. São acontecimentos imprevisíveis e felizes. Para conceber este disco pesquisei não só sobre o riso, a piada etc. mas também pesquisei imensa música. Tentei contextualizar-me relativamente ao repertório para bandas filarmónicas, tanto o mais tradicional como contemporâneo; ouvi várias peças dos meus colegas para estes género de ensemble (para compreender o estado da arte); analisei peças com cenários parecidos e analisei peças cuja informação musical me interessava explorar. Foi assim que aprendi a orquestrar para uma formação com esta dimensão e complexidade. Também foi através desta investigação que consegui definir a conjugação viola + banda filarmónica.
Este trabalho foi desenvolvido em parceria com a Orquestra Filarmónica Gafanhense. Como se desenvolveu esta colaboração?
Com o apoio do Henrique, organizou-se um primeiro contacto, através do concerto de aniversário da Filarmónica. Isto ainda em 2019. Prevíamos avançar para as gravações, etc. no ano seguinte. Mas o processo ficou interrompido devido à pandemia. Nesta fase inicial, tanto a Orquestra Filarmónica Gafanhense como o 23 Milhas (instituição que nos acolheu), decidiram apoiar este projeto. Assim como a Antena 2. Entretanto, Trégua ganhou um apoio à edição fonográfica da GDA e, depois, um apoio à criação da DGArtes. Este segundo apoio foi determinante para que abríssemos Trégua a outras disciplinas artísticas. Ou seja, convidámos o Nélson D’Aires para fazer fotografias, o Pedro Zimann para fazer um documentário e o Rui Eduardo Paes para escrever. Os três testemunharam o processo criativo e a gravação. Assim, Trégua também serviu de alavanca para outras manifestações artísticas além da música. Participações complementares que acrescentam outras camadas de perceção e pensamento sobre este trabalho. Fiquei muito grato por contar com estas pessoas na minha equipa. E não me posso esquecer de mencionar a pessoa mais importante para que tudo isto avançasse: a Leandra Morais da Black Dress, que ficou responsável pela produção deste projeto. Infelizmente a pandemia foi adiando as nossas tentativas de agendar um período de gravação. Esta data era essencial para que tudo começasse. Eu próprio precisava de um deadline para compor o disco. Finalmente, conseguimos gravar no final de Julho de 2021, no Cais Criativo da Costa Nova, em pleno alerta vermelho. Devo destacar o papel fundamental do Luís Ferreira, diretor do 23 Milhas, que foi determinante para a solução. E também a incrível coragem demonstrada pelas 60 pessoas que fizeram parte da residência de gravação. O documentário sobre Trégua será estreado este ano (2022).
A apresentação deste trabalho ao vivo implicará uma logística complicada. Há planos para apresentação deste projeto em concerto?
Estreámos Trégua no passado dia 7 de Novembro de 2021, na Casa da Cultura de Ílhavo, um concerto inserido no Festival MILHA. Foi uma estreia cheia de entusiasmo e excitação. Estamos neste momento a negociar futuras atuações. Já surgiram alguns manifestações de interesse em receber Trégua. A apresentação ao vivo implica, sim, uma logística complicada. Porém, a maior dificuldade é a conjuntura atual. Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã e por isso ninguém se arrisca a fechar datas com demasiada antecedência.
Para além de Trégua, quais os seus planos e projetos para os próximos tempos?
Estou neste preciso momento a compor para o meu próximo disco que vou gravar em Fevereiro. Será um disco inesperado, mas muito belo, para um sexteto de violas, em homenagem a um grande músico português. Este disco sairá em Maio deste ano. Tenho alguns concertos marcados. Já no final deste mês, vou fazer um recital com filmes de animação do início do século XX no Rivoli. Depois será o lançamento do documentário Trégua. Também espero que, ainda este ano, seja editada uma obra que compus e gravei com textos inéditos do Gonçalo M. Tavares, fruto de um convite da parte do Paulo Mendes para uma exposição do MAAT. Ainda há o disco Viola Popular que começou a ser gravado durante as quarentenas e que tem estado em modo de espera. Só nos falta gravar alguns detalhes para o finalizar. Este é um disco que me entusiasma muito. Um pouco antes de me aventurar pelos meandros filarmónicos, viajei entre sonoridades portuguesas, juntamente com o Tiago Manuel Soares na percussão tradicional portuguesa, o João Diogo Leitão na viola braguesa (que lançou em 2020 um disco espetacular para viola braguesa a solo), a Sofia Portugal na voz e o Rui Ferreira na produção, captação, edição, etc. Além disto conto continuar a desenvolver algumas colaborações que se iniciaram no final deste ano ou durante as quarentenas. Neste ano também irei começar a preparar um novo disco a solo. Já tenho ideias, mas preciso ainda de pesquisar um pouco. Vai ser fixe.