O Jardim de Verão já começa a ser uma nova tradição do verão citadino lisboeta, apresentando música ao vivo no auditório ao ar livre da Gulbenkian, antecipando o Jazz em Agosto – esse sim, já um acontecimento com larga história. Este ano o programa do Jardim contou com curadoria da Galeria ZDB e a programação musical incluiu actuações de Maria Reis e Ruin Marble (dia 3 de Julho), Norberto Lobo e Burnt Friedman & João Pais Filipe (dia 4), Orquestra Gulbenkian com Joana Carneiro (dia 5), Orquestra Gulbenkian com Nuno Coelho (dia 10), B Fachada e Julinho da Concertina (dia 11), Peter Evans em dose dupla, com a residência/workshop Som Crescente e em trio com João Barradas e Demian Cabaud (dia 12), Marco Franco com Joana Gama e Tiago Sousa, seguido de CALHAU! (dia 17), Luís Severo e Selma Uamusse (dia 18) e Metais da Orquestra Gulbenkian (dia 19). Ou seja, a programação foi marcada por uma grande amplitude e diversidade estética, não tendo faltado jazz e improvisação. Apesar das limitações causadas pela pandemia, e com a lotação do anfiteatro ao ar livre reduzida a 1/3, foi possível voltar a assistir a música ao vivo.
[Fotografia: Vera Marmelo]
[Fotografia: Vera Marmelo]
No campo jazzístico, a proposta que mais expectativa gerava seria a actuação dupla de Peter Evans. O trompetista tem-se afirmado como um dos instrumentistas mais inovadores do jazz contemporâneo, trabalhando em formato solo, ao leme dos seus grupos e em diversas colaborações. Para o anfiteatro da Gulbenkian o trompetista trouxe dois projectos distintos: por um lado, levou a apresentação da residência/workshop Som Crescente, seguida de uma actuação em trio com João Barradas e Demian Cabaud. O americano tem estado a viver em Lisboa e Som Crescente é uma residência promovida pela ZDB, que tem colocado Evans a dirigir e orientar jovens músicos portugueses. A Galeria ZDB acolheu já algumas apresentações ao vivo e o projecto foi agora transportado para um palco maior. No anfiteatro juntaram-se João Almeida (trompete), João Gato (saxofone), Samuel Gapp (piano), José Almeida (contrabaixo), João Valinho (bateria) e João Carlos Pinto (electrónica), partilhando o palco com Evans (trompete e pocket trumpet). Se no início se sentia uma distinção entre mestre e discípulos, à medida que a música avançava essa barreira começou a diluir-se. O octeto tratou de interpretar peças que combinavam uma forte composição escrita com espaços para improvisação, e a reposta dos pupilos mostrou-se de grande nível. O primeiro destaque foi João Almeida, com o seu trompete a dialogar com o trompete de Evans, a mostrar agilidade e ideias, não ficando mal ao lado do mestre. O saxofone de João Gato também teve intervenções de bom nível, destacando-se ainda o piano sempre presente e atento de Samuel Gapp. A dupla rítmica (José Almeida no contrabaixo e João Valinho na bateria) mostrou qualidade e João Carlos Pinto (electrónica) também foi uma boa surpresa. Além de revelar um conjunto de talentos da novíssima geração do jazz nacional, esta apresentação mostrou a qualidade do seu trabalho colectivo. Houve alguns solos e momentos individuais dignos de registo, mas a actuação valeu sobretudo pelo envolvimento colectivo, pela forma como todos colocaram a sua técnica e inspiração ao serviço do colectivo. Os jovens saíram de palco enquanto Evans tocava um solo e, ainda durante o mesmo, entraram em palco João Barradas (acordeão) e Demian Cabaud (contrabaixo). Sem intervalo formal, o trio retomou a actuação. Já não se tratando de uma dicotomia entre mestre e discípulos, agora passou-se para um assumido encontro entre pares. Barradas e Cabaud são dois músicos de enorme qualidade, com discografias amplas que reflectem as suas valias artísticas. O trio tratou de estabelecer um diálogo democrático, com as três vozes em encontro e partilha, relevando enorme entrosamento e capacidade de reação. Os três músicos deram uma lição de interpretação e comunicação.
[Fotografia: Vera Marmelo]
[Fotografia: Vera Marmelo]
Na noite de 17 o palco da Gulbenkian assistiu ao encontro de três pianistas, aqui trabalhando três diferentes teclados: piano, celesta e harmónio. Marco Franco, que tem trabalhado sobretudo como baterista nos terrenos do jazz e da improvisação livre, apresentou em 2017 o surpreendente disco Mudra, trabalho de piano solo, e desde então vem trilhando este percurso alternativo. Joana Gama, excelente intérprete (com registo muito diverso, com destaque para as hercúleas 14 horas de Satie!), aqui aplica-se num outro teclado, mais atípico, a celesta. E Tiago Sousa, músico com discografia vasta feita de música original, onde se incluem discos notáveis como Samsara e Walden Pond’s Monk, aqui em vez do piano usa outro instrumento particular, o harmónio (instrumento que usou sobretudo no trio Pão, grupo com Pedro Sousa e Travassos). Entre o som clássico do piano, o som mais agudo e “celestial” da celesta e os ambientes atmosféricos do harmónio, o trio seguia enlaçado nos mesmo motivos, que iam sendo repetidos, quase em espiral. Uma abordagem curiosa, uma reunião instrumental original que resulta num som estranhamente sedutor. Seguiu-se a actuação de Calhau!, duo de Marta Ângela e João Alves, aqui com a participação de Vasco Alves na gaita-de-foles (apenas na parte inicial). O trio apresentou em palco uma performance provocadora onde mostrou a sua música experimental, sobretudo assente em electrónica processada em tempo real combinada com a voz. Com uma grande vertente performativa, musicalmente menos interessante. Não tivemos possibilidade de assistir a mais concertos, mas bastaram estas duas noites para confirmar diversidade estética do Jardim de Verão e, neste tempos de medo e incerteza, matar saudades da música ao vivo.