Estamos no fim de Janeiro e em Paris o dia está frio e nublado. Entre a zona boémia parisiense (o Crazy Horse ali ao lado) e a pacífica Montmartre de Amélie Poulain, chegámos ao local combinado para a entrevista. Começamos por falar com John Scofield (o histórico guitarrista) e John Medeski (o teclista do trio MMW), mas a meio da entrevista o baterista Billy Martin junta-se também à conversa. O motivo da entrevista, em tom bem-humorado, é o álbum que os reuniu em quarteto, Out Louder, editado em 2006.
Já tinham trabalhado juntos no disco A Go Go (1997), mas como é que surgiu a ideia de integrar John Scofield como membro permanente, criando um novo grupo “Medeski, Scofield, Martin & Wood”?
JM: Um dia acordámos e ele lá estava…
JS: E eu não me ia embora!…
JM: Desde que colaboramos naquele disco, tocámos juntos, cruzámo-nos em alguns festivais e começámos a falar em fazer mais coisas em conjunto. No ano passado surgiu essa oportunidade e pensámos que fazia mais sentido ter neste processo de criação do álbum uma colaboração mais intensa. Não queríamos fazer de novo um “A Go Go”, queríamos fazer algo diferente.
JS: E tentámos fazer coisas que não tínhamos feito no disco “A Go Go”, tentámos que fosse uma colaboração mais livre, daí resultando música mais livre também. Foi por isso que decidimos trabalhar neste disco.
Foi fácil para si, John Scofield, integrar-se neste grupo, já que eles tocam juntos há muito tempo?
JS: Sim. Eu adoro a maneira como eles tocam, por isso experimentámos tocar juntos e funcionou! Acho que é uma boa junção estilística…
JM: Muito natural…
JS: Eles adaptam-se a mim, eu adapto-mo a eles e acabamos por ficar todos um pouco diferentes, o que é bom!
O grupo MMW já colaborou com outras pessoas, como John Zorn e Marc Ribot, por exemplo. Em que medida é que esta experiência com John Scofield foi diferente?
JM: É difícil explicar, porque musicalmente ceda pessoa tem a sua voz própria. E o John Scofield é o John Scofield! Esta foi a primeira vez que tivemos uma verdadeira colaboração. No passado chamámos o Ribot, o Zorn, o Marshall Allen ou o DJ Olive para esta ou para aquela música específica – chamávamos alguém que encaixasse na atmosfera de uma música. Neste caso reunimo-nos para fazer um disco como quarteto. É uma abordagem completamente diferente. Como uma família a ter uma discussão ao jantar…
JS: Absolutamente! (risos)
JM: Foi muito fácil e divertido.
JS: Sempre adorei a maneira deles tocarem e sempre quis encontrar pessoas que tocassem assim, que fizessem as coisas que eles fazem. Foi muito bom para mim.
O período de fusão de Miles Davis é certamente uma referência importante para todos vocês – especialmente para o John Scofield, que chegou inclusivamente a fazer parte da sua banda, na década de ’80. A música “Miles Behind” é uma forma de reconhecer a sua importância?
JM: Essa música nasceu da mesma forma como muitas outras do disco, enquanto improvisávamos juntos. No processo de criação para o disco a primeira coisa que fizemos foram “jams” de cerca de quarenta minutos e a partir daí aproveitamos material que se transformou nas músicas do álbum. Uma das coisas que aproveitamos dessas “jams” foi aquela batida rock, rápida, que o Billy toca. É interessante porque o Billy nunca tinha ouvido o Miles dos anos 70’s. Mas ele pegou numa batida rock e tocou-a de uma forma mais livre, mais jazz, que era precisamente aquilo que o Miles estava a fazer naquela altura. E então quando ele ouviu o Miles disse: “Oh meu Deus, estes tipos estavam a fazer isto!”
[Billy Martin entra na sala.]
JM: Quando decidimos fazer esta música escolhemo-la pela boa onda, não pensamos se iria ou não ia soar ao Miles do período “Live/Evil”, “Fillmore East”, etc… Quando demos o nome à música a ideia não era deixar o Miles para trás, o nome pode significar qualquer coisa…
JS: Já existe o disco “Miles Ahead”, esta música é “Miles Behind”. Foi a nossa homenagem ao Miles, porque a música acabou a lembrar-nos dele, mesmo que não tivéssemos começado com isso em mente.
Alguns dos temas são reminiscentes da música soul instrumental dos anos 60, de grupos como Booker T and the MGs ou The Meters. O John Scofield homenageou Ray Charles com o álbum That’s What I Say (2005). A música soul de editoras como Motown, Stax ou Atlantic é uma referência importante para vocês?
JS: Eu comecei a tocar por essa altura. Eu era jovem e era essa a música que se ouvia na rádio, era essa a música que se tocava nos bares, esse foi o meu R&B. Naquela altura havia os Meters, Booker T and the MGs, mas também muitas outras bandas… Quem tivesse dinheiro não usava um orgão Farfisa, usava um Hammond B3, e cada banda tinha guitarra, baixo e bateria. Como não havia vocalistas simplesmente tocavam-se instrumentais. E essa era a música daquela altura! E agora é engraçado ver como aquilo que faço actualmente tem afinidades com essa música que ainda hoje adoro. Mas nessa altura não se pensava “vou tocar uma coisa do género Booker T”, era simplesmente R&B! E isso foi uma das coisas com que comecei, a par dos Beatles, que era outra versão dessa mesma música. E além dos Beatles havia os Beach Boys, Four Seasons, Little Anthony and The Imperials… E o Ray Charles era uma lenda, nos anos 50 já influenciava toda a gente, toda a gente queria ser como o Ray!
BM: É verdade, ele era extraordinariamente popular, tinha imensos êxitos e o seu público era transversal, não era só o público negro… E para mim essa música de New Orleans, quer se chame soul ou R&B, influenciou-me. Comecei obviamente pelo rock, já que cresci nos anos ’70, com os Led Leppelin, o Jimi Hendrix e todas essas coisas. Mas quando comecei a querer seguir um caminho mais criativo que percebi que a música de New Orleans estava entre o rock e o jazz cheio de swing. E assim fui descobrindo muita dessa música e muitos desses artistas.
JM: Nós não dizemos conscientemente “agora vamos fazer uma música à Meters”, apenas acontece assim! Há tanta coisa neste disco, este disco vai a muitos sítios diferentes e são tudo estilos de que gostamos, que se transformam à nossa maneira de tocar.
O John Scofield editou o ano passado o álbum Saudades com outro grupo “orgânico”, o Trio Beyond [com Larry Goldings e Jack DeJohnette]. Foi um trabalho muito distinto deste com o trio Medeski, Martin and Wood?
JS: O espírito de criatividade é muito forte em ambos os projectos. São ambas bandas que são capazes de arriscar e seguir uma ideia espontânea, no momento. No Trio Beyond tocámos standards, que é uma coisa que não fizemos, pelo menos até agora, com o MMW. Para além disso são seres humanos completamente diferentes!…
JM: Ora bem, e de quem gostas mais? (risos)
JS: Não gosto de nenhum dos grupos, só ando nisto pelo dinheiro! (risos)
BM: Acho que uma das diferenças é que nós somos uma “working band”, enquanto eles são todos ícones, com carreiras individuais bem definidas.
JS: Vocês têm este entendimento de grupo perfeito, que eu com o Jack e o Larry ainda estamos a procurar. Mas também já trabalhei individualmente com eles, trabalhei com o Larry em muita coisa que fiz nos anos 90 e com o Jack já trabalhei em imensos outros projectos.
Os MMW começaram como grupo acústico, mas transformaram-se num grupo eléctrico. Não colocam a possibilidade de regressar mais vezes ao formato acústico?
JM: Bem, nós fizemos o disco Tonic (2000), gravado ao vivo no Tonic em Nova Iorque, e de vez em quando fazemos alguns espectáculos acústicos. E eu adoro. O piano é o meu primeiro instrumento e adoro fazer concertos solo, foi por uma questão de logística que nos transformámos num grupo eléctrico. Mas sim, nós vamos fazendo espectáculos acústicos e provavelmente vamos editar um novo disco acústico em breve.
De onde é que surgiu a ideia de incluírem no disco covers de música pop, “Julia” dos Beatles e “Legalize It” de Peter Tosh?
JS: A música “Julia” foi uma música que eu toquei com a minha filha. Ela é cantora, fez um concerto só com músicas do John Lennon e eu acompanhei-a nessa música. Como já conhecia bem a música quando fomos para estúdio sugeri que fosse incluída no disco. É difícil encontrar músicas pop daquele período que funcionem enquanto instrumentais abertos à improvisação, mas acho que essa funcionou bem.
BM: E nós já tocávamos a “Legalize It” do Peter Tosh ao vivo há algum tempo, até chegámos a tocá-la com o Sco. Não era algo que precisássemos de gravar, mas com o Scofield a tocar connosco encaixou bem. E há outra cover, uma música tradicional de New Orleans, “Tootie Ma Is A Big Fine Thing”, que foi outra música que quisemos experimentar.
JM: E são todas grandes músicas!
Nunca os vi a tocar ao vivo, mas li que as vossas actuações ao vivo são mais intensas e livres que os álbuns. O que poderemos esperar das actuações ao vivo, serão muito diferentes das gravações de estúdio?
JM: Sim, nós nunca fazemos duas interpretações iguais da mesma música. Quando tocamos, tentamos tocar de modo diferente de cada vez. Ao vivo as músicas serão provavelmente maiores, haverá mais solos, mais interacção. As nossas gravações já são muito improvisadas, mas apenas acaba por ficar registada uma pequena parte do todo.
BM: Quando tocamos ao vivo fazemos por não soar exactamente como o disco, fazemos por não ser uma simples interpretação de uma obra clássica. É vital que possamos fazer os nossos solos, que possamos ter uma “conversação” entre nós – mesmo que esteja só a secção rítmica a tocar há sempre uma química que se encontra.
Os MMW tocam juntos desde o início da década de ’90 e o John Scofield toca desde os anos ’70. Depois destes anos todos de música, quais são aqueles que classificam como os vossos grandes feitos artísticos?
JS: Bem, eu deixo isso para outra pessoa analisar. Eu pratico e espero melhorar. Sinto-me bem quando aprendo qualquer coisa nova, quando aprendo algo novo fico num estado de graça. Basicamente, é o que disse o Joe Pass: “toco bem, sinto-me bem; não toco bem, não me sinto bem”.
JM: Não pensei nisso, não nos compete a nós dizer.
JS: O Miles Davis estava uma vez num grande festa na Casa Branca, para a qual o Jimmy Carter tinha convidado os grandes artistas da época. Uma mulher que lá estava perguntou ao Miles: “Então e você porque é que é famoso?”. E ele responde: “Bem, eu mudei a história da música duas ou três vezes, só isso.”
JM: E ele tinha razão!
JS: Era como o Jaco. Quando o conheci ele disse-me: “eu sou o melhor baixista do mundo!”. E eu pensei: “que idiota”. Mas ele era mesmo!
Uma música dos MMW, “End Of The World Party (Just In Case)”, surge na série de TV “Anatomia de Grey”…
JS: Boa! Já receberam o dinheiro?
JM: Sim, já recebemos qualquer coisa…
BM: Eu nunca vi nada!
JM: Eu é que compus a música!
JS: Olha, tu não recebeste nada, ele recebeu! (risos)
…E a questão é: se pudessem escolher em que séries de TV ou filmes gostariam de incluir a vossa música?
JM: Nos “Ídolos”! Gostava de os ver a cantar as nossas músicas.
JS: Perante milhões de pessoas…
JS: Bem, eu não vejo televisão há séculos, não estou a par do que se passa… Talvez no “South Park”!
BM: Também há cineastas de que nós gostamos…
JM: Eu gostava de fazer uma banda sonora para um filme. Agora o que é comum é juntar algumas canções, mas eu sinto falta de bandas sonoras a sério, compostas de propósito para um filme.
BM: Sim, quando é uma banda sonora composta de raiz por vezes os resultados são muito bons…
JM: Mas a minha resposta definitiva é que, seja qual for o programa de televisão mais popular do mundo, é nesse programa que quero ter banda sonora!
[Entrevista realizada em Paris em Janeiro de 2007; publicada na revista Jazz.pt #13.]