O multi-instrumentista Gunter Hampel (n. 1947) é uma figura histórica do jazz criativo europeu. Editou discos marcantes como “Heartplants” (1964) ou “The 8th of July 1969” (1969) e foi lendária a sua parceria com a cantora Jeanne Lee (1939-2000) – que foi também sua companheira de vida. Em Julho de 2009 Gunter Hampel actuou no festival Jazz Im Goethe-Garten, em Lisboa. Esta conversa aconteceu depois desse concerto (23 de Julho) e foi publicada na revista Jazz.pt #37.
Nasceu na Alemanha em 1937. Como aconteceram os seus primeiros contactos com o jazz?
Tendo nascido no ano de 37, eu ainda vivi a Segunda Guerra Mundial. Após a guerra os americanos ficaram e nessa altura conheci uns soldados americanos negros. Eu era um miúdo, tinha uns oito anos, e tocava o acordeão. Eu ia ter com eles porque eles tinham selos, pastilhas elásticas e bananas – coisas que eu nunca tinha visto antes – e uma vez levei o acordeão. Um dos soldados começou a tocar guitarra e tive aí a minha primeira jam session. Nessa altura comecei também a ouvir a música da rádio das forças americanas e um dia ouvi o Louis Armstrong. Na altura não percebi as palavras, mas entendi o significado daquela música, nunca tinha sentido nada como quando ouvi aquela música incrível, que me deixou estupefacto. Continuei a ouvir essas músicas e essa exposição à cultura jazz foi uma coisa que me marcou para o resto da vida.
E a partir de que momento é que decidiu que ia ser músico profissional?
Aconteceu em 1958… Mas foi o meu pai que me levou a ser músico profissional. Ele era pianista, deu-me aulas de música, apercebeu-se que eu tinha talento e aos quatro anos comecei a ter aulas de piano. No primeiro dia de aulas o professor pediu-me para tocar qualquer coisa, eu toquei uma música e ele perguntou-me o que era aquilo que eu tinha tocado. E eu disse-lhe que era uma composição minha. Aos quatro anos já estava a compor músicas! Então, o professor pediu-me que para a aula seguinte eu levasse uma composição nova. Um dos motivos porque faço workshops com crianças, como fiz aqui no Goethe Institut, é para que os miúdos tenham oportunidade de revelar o seu talento, e é importante que possam ser bem encaminhados.
Não é um músico de apenas um instrumento, é multi-instrumentista, tem tocado ao longo da sua carreira instrumentos muito diferentes. Porquê esta utilização de diferentes instrumentos?
Quando tenho uma composição e a toco no piano ela tem uma certa forma. Mas quando toco a mesma composição no vibrafone ou no clarinete, ela ganha uma nova cor, soa diferente. Primeiro aprendi o piano, depois aprendi o clarinete e depois aprender o saxofone não é muito difícil, porque o trabalho de dedos é semelhante, as técnicas são parecidas… Ouvi o Gerry Mulligan e comprei um saxofone barítono. Depois quis aprender a tocar como o Lester Young… Ainda hoje consigo tocar todos os saxofones, mas o clarinete baixo é para mim o instrumento principal: tem uma grande amplitude e uma expressividade como se estivesse a falar. Escolhi o instrumento porque uma vez conheci o Eric Dolphy, tivemos uma “jam session”, ele tocou o meu vibrafone e eu pedi para tocar o clarinete baixo. Ele gostou do meu som e incentivou-me a tocar.
Além do clarinete baixo, é conhecido por tocar também o vibrafone. Porque escolheu este instrumento?
Eu comecei por aprender piano, e o teclado do vibrafone é parecido, só não é tocado com as mãos! Músicos como Lionel Hampton, Terry Gibbs, Milt Jackson e Bobby Hutcherson inspiraram-me muito… Comprei o meu primeiro vibrafone aos 16 anos e continuo a adorar o instrumento.
Fez parte da primeira geração da improvisação europeia, como viveu esses tempos?
Deixe-me rectificar uma coisa: eu fui a primeira pessoa a tocar música livre na Europa! Quanto tinha pouco mais de vinte anos tinha um trio de improvisação livre, eu tocava saxofone e os outros tocavam contrabaixo e bateria. Eu tinha começado a tocar free, antes mesmo de ter ouvido alguém fazer isso, tive uma visão devia tocar fora das regras e diverti-me a fazer isso. Dez anos depois, com o meu quinteto que editou o álbum “Heartplants” na SABA [Manfred Schoof, Alexander von Schlippenbach, Buschi Niebergall e Pierre Courbois], comecei a desenvolver uma música europeia livre e original. Até aí tínhamos copiado os modelos americanos, mas a partir daí começamos a criar uma coisa nova, europeia.
Um dos seus álbuns tem por título “All the Things You Could Be If Charles Mingus Was Your Daddy”, assinado pela Galaxie Dream Band. O Mingus foi uma das suas grandes referências?
O Charles Mingus é um dos grandes criadores da era pré-“free”. E foi importantíssimo, tal como todos os que começaram a tocar música free – Coltrane, Ornette Coleman, Eric Dolphy, etc. O Dolphy, tal como o Duke Ellington, tinha uma visão colectiva da música. Isto influenciou-me especialmente, e é isso que ainda hoje tento fazer. Aquilo que faço não é apenas apresentar músicas para os outros músicos toquem, quero receber ideias dos meus músicos, para que possamos trabalhar em conjunto, em equipa. Tenho trabalhado com músicos jovens para que possam receber os meus conceitos e que no futuro possam desenvolver os seus próprios conceitos.
A certa altura mudou-se para Nova Iorque, criou a sua editora Birth Records e editou o disco “The 8th of July 1969”, que contou com Anthony Braxton, Willem Breuker, Steve McCall e Jeanne Lee. O contacto com os músicos locais afectou a música que estava a desenvolver?
Quando tive a oportunidade de tocar com músicos com personalidade forte – como Braxton, Jeanne Lee ou Steve McCall – senti que a música evoluiu para um outro nível. O meu grupo era constituído por músicos europeus e americanos, por isso a música não era algo igual ao que já existia, nasceu uma coisa nova, resultado de uma fusão das culturas. Sinto-me um privilegiado por ter ao longo da minha carreira ter colaborado com músicos muito especiais.
Neste momento tem actuado com o seu trio com Johannes Schleiermacher (saxofone tenor) e Bernd Oezsevim (bateria), além do bailarino/breakdancer. Qual é o conceito deste grupo?
O nosso conceito é que não temos conceito. Estou a apresentar o breakdancer ao público que vem ao concerto, nós desenvolvemos um novo conceito à volta da dança. Eu já trabalhei para ballet – com bailarinos como o Rudolf Nureyev ou Maurice Béjart – mas agora tenho estado mais interessado em trabalhar nesta outra área. Este breakdancer, que é russo, tem a capacidade de improvisar a dança à medida que nós vamos improvisando na música. As minhas composições, tal como as de Ellington ou de Mingus, têm a função de juntar as pessoas, de as colocar a trabalhar em conjunto. É como uma equipa de futebol, como o Manchester United, o Real Madrid ou o Benfica: os jogadores não sabem à partida o que vai acontecer em campo, mas têm a capacidade de trabalhar em conjunto para criar no momento as condições para chegar ao golo.
Um dos seus álbuns mais recentes é um disco a solo. Sente que esta é uma forma mais directa de expressar as suas ideias?
Nem sempre temos a possibilidade de escolher!… Mas tem razão, quando toco sozinho não tenho ninguém que me afaste do caminho daquilo que eu pretendo fazer. Quando se trabalha em parceria existe uma comunicação com o outro; quando se trabalha sozinho existe uma comunicação consigo próprio, com a sua alma, com a sua criatividade… Na música a solo podemos ir até onde quisermos, até onde a criatividade nos deixar.
Além de músico, está também ligado à pintura. Qual é o papel da pintura na sua vida?
Para mim é algo como fazer um solo. Em vez de trabalhar em equipa, na pintura estou a comunicar comigo mesmo. Pinto desde os cinco anos de idade,a minha mãe queria despertar a minha criatividade e incentivou-me, por isso é algo que faço com naturalidade desde então. Por vezes tenho exposições, uso algumas das minhas pinturas para as capas dos meus discos, por vezes as exposições servem também para promover concertos, está tudo interligado.
Numa entrevista o Anthony Braxton disse-me que actualmente o jazz não lhe interessa, que está apenas interessado naquilo que chama “música criativa”. Qual é a sua perspectiva?
É preciso ver o que o Anthony considera como jazz. Tendo em conta aquilo que a maioria das pessoas consideram o que é o jazz hoje em dia, então acho que o Anthony tem toda a razão. Porque o lado criativo tem estado ausente daquilo que é a maior parte do jazz actual, em que só interessa tocar bem os standards, voltar a tocar aquilo que já se conhece bem. A mim interessa-me explorar uma música criativa, que é algo que o Anthony continua a fazer e eu espero continuar também a fazer. É por isso que continuo a procurar colaborar com músicos criativos, pessoas com quem possa trocar ideias, dar e receber ideias.