ECM Records, 2018: na sombra de gigantes


Andrew Cyrille

A editora ECM Records continua a ocupar uma posição fundamental na definição do jazz contemporâneo. Sem esquecer seu o rico passado (que agora está também disponível no Spotify), a editora continua a ser veículo de edição de grandes álbuns do nosso tempo, entre nomes consagrados e novos talentos. Se 2017 foi o ano de Vijay Iyer (a crítica foi unânime com o disco “Far From Over”), neste ano de 2018 a editora alemã já lançou vários candidatos, entre históricos regressados e gerações mais jovens que querem reclamar o trono. 

 

Andrew Cyrille / Wadada Leo Smith / Bill Frisell
“Lebroba”
(ECM, 2018)

O percussionista Andrew Cyrille é uma verdadeira lenda vida, figura central do jazz criativo da segunda metade do século XX. Integrou a banda de Cecil Taylor durante doze anos, é um dos esteios do Trio 3 (com Oliver Lake e Reggie Workman) e tem colaborado com músicos como David Murray, Anthony Braxton, Marilyn Crispell, Peter Brötzmann ou Carla Bley, entre muitos outros. No ano passado editou o soberbo “The Declaration of Musical Independence”, a sua estreia como líder na ECM, ao leme de um quarteto que juntava Bill Frisell, Richard Teitelbaum e Ben Street. Agora, Cyrille apresenta uma nova formação, com dois músicos consagrados: Bill Frisell e Wadada Leo Smith. Só a ideia de vermos estes músicos juntos já desperta curiosidade e o trio trata de concretizar as expectativas. O grupo interpreta um total de cinco temas, todos originais. Entre a guitarra delicada de Frisell, o trompete expressivo de Leo Smith e a percussão atenta de Cyrille, nasce uma música bela e desafiante. O grupo dialoga com toda a tranquilidade do mundo, sem atropelos. O tema final “Pretty Beauty”, da autoria de Cyrille, é um dos momentos que melhor expressa a qualidade do grupo: esta balada doce é trabalhada com a maior delicadeza e, a cada pormenor, a cada nota, os músicos expressam sentimento.

 

Keith Jarrett / Gary Peacock / Jack DeJohnette
“After the Fall”
(ECM, 2018)

Gigante é também o Standards Trio, o grupo que reúne três músicos veteranos que têm atravessado a história do jazz. O trio de Keith Jarrett (piano), Gary Peacock (contrabaixo) e Jack DeJohnette (bateria) está de regresso aos discos, editando uma gravação de um concerto de 1998 (New Jersey). Na altura o concerto marcou o regresso aos palcos de Jarrett, após uma pausa forçada de dois anos por doença. Agora passaram vinte anos desde a data da gravação, mas a música soa intemporal. O grupo trabalha a sua típica interpretação impecável de standards, com toda a elegância, dinâmica e descontração. Ao longo deste disco duplo o trio atravessa a história do jazz com o habitual classicismo, com paragem alargada no bebop e surpreendendo com a inclusão de vários temas escritos por saxofonistas (Charlie Parker, Sonny Rollins, Paul Desmond e John Coltrane). Os temas são sobretudo trabalhados em tempos médios e rápidos e encontramos diversos momentos vibrantes (como nos temas “Bouncin’ with Bud” de Powell ou “Moment’s Notice” de Coltrane). Para a despedida ficou guardada uma revisão melancólica de “When I Fall in Love”. É verdade que, depois de tantos discos e tantos concertos, dificilmente encontraremos alguma surpresa ou novidade. Contudo, a beleza da música deste trio magnífico nunca deixa de fascinar. Somos conquistados pela magia de cada melodia como se a ouvíssemos pela primeira vez.

 

Mark Turner / Ethan Iverson
“Temporary Kings”
(ECM, 2018)

Também grandes, e a caminhar para o estatuto de gigantes, o saxofonista Mark Turner e o pianista Ethan Iverson acabam de editar um registo em duo que é histórico. Turner é um filho dos anos 1990, emergiu entre a geração dos “young lions” e, além de se ter afirmado como notável virtuoso, abriu caminho como músico com ideias próprias – entre os seus projectos mais recentes está o trio Recognition, com a cantora portuguesa Sara Serpa e a harpista Zeena Parkins. Iverson também iniciou a carreira nos 90’s, mas alcançou visibilidade nos anos 2000, começando por se afirmar como pianista do trio The Bad Plus, formação que injectou energia e ideias frescas no jazz do novo século XXI (no ano passado abandonou o trio, substituído por Orrin Evans). Juntos, Turner e Iverson apresentam aqui uma proposta arriscada, um duo instrumental atípico, onde está ausente a secção rítmica. Este disco reúne um total de nove temas: seis temas originais da autoria de Iverson, dois de Turner e uma composição de Warne Marsh (saxofonista que influenciou Turner, colaborador regular de Lennie Tristano). A estética é sóbria, por vezes austera, por vezes evocativa da música de câmara. O piano de Iverson começa por fornecer uma base sólida sobre o qual o saxofone tenor de Turner vai planando, com foco, sem exibicionismo; apesar da contenção, o duo improvisa com originalidade. Iverson e Turner dialogam com tranquilidade, alternando ideias, trabalham uma comunicação sempre ligada e atenta, numa música onde a improvisação do jazz se confunde com a filigrana da clássica mais pura. O tempo é deles e Turner e Iverson não hesitam em reclamar o trono.

 

Wolfgang Muthspiel
“Where the River Goes”
(ECM, 2018)

Música de carreira longa, iniciada no ano de 1985, o guitarrista austríaco Wolfgang Muthspiel estreou-se na ECM em 2013, com o trio MGT, com os guitarristas Ralph Towner e Slava Grigoryan. No ano seguinte editou o seu primeiro disco ECM na condição de líder, “Driftwood”, ao leme de um trio com os americanos Larry Grenadier e Brian Blade. Em 2016 Muthspiel conquistou o mundo com o álbum “Rising Grace”, ao leme de um verdadeiro quinteto “allstar”, reunindo Ambrose Akinmusire, Brad Mehldau, Larry Grenadier e Brian Blade – todos grandes. Para este seu disco mais recente manteve o mesmo grupo base, substituindo o baterista: sai Brian Blade, entra Eric Harland. Este disco reúne um total de nove temas, dos quais seis são originais da pena de Muthspiel, há uma composição de Mehldau e uma improvisação colectiva. Mantém-se as premissas do disco anterior: a guitarra tem o apoio do trompetista superlativo Akinmusire, do extraordinário pianista Mehldau, do soberbo contrabaixista Grenadier e do magnífico baterista Harland. O quinteto alimenta uma óptima comunicação, acrescentando luz às composições. Há uma homenagem a Django Reinhardt e um tema dedicado à capital da Argentina, passando por momentos introspectivos, até momentos de vibrante dinâmica colectiva. Fluindo com naturalidade, o álbum atravessa diversos ambientes sonoros, sempre exibindo a qualidade dos instrumentistas envolvidos.