Oriundo do Brasil, o guitarrista Túlio Augusto reside em Portugal há vários anos. Em 2017 editou o seu disco de estreia, “Blue Spell”, e está prometida para breve a edição do seu disco “Solitário”, trabalho a solo onde assume uma abordagem virtuosística, entre o jazz e o blues. Antecipando a edição deste segundo registo, Túlio Augusto apresenta-se.
Pode apresentar o seu percurso?
No Brasil, é comum tocar um instrumento de ouvido (é o mais comum, inclusive). Eu comecei por volta dos 16 anos e só por volta dos 18 comecei a aprender a ler música. Nessa época, eu podia tocar por mais de 8 horas por dia, facilmente. Sempre toquei guitarra com mais frequência, mas tive interesse em aprender harmonica por ser menos comum e mais portátil. Ir para a universidade significou mudar de cidade. Nasci e passei parte da minha infância em Guanambi, uma cidade do sudoeste da Bahia com quase cem mil habitantes, hoje em dia. Estudei Composição e Regência na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, capital da Bahia. Isso foi muito importante porque Salvador é um dos lugares mais especiais, em termos de cultura, no mundo todo, e ajudou muito a ampliar minha visão sobre o Brasil e o mundo. Se o Brasil é uma grande mistura de culturas e povos, Salvador é um dos lugares onde isso fica mais evidente. O curso de Composição na UFBA é voltado para a música erudita. Mas a música erudita no Brasil absorveu (e continua absorvendo) muito da cultura popular. Em Salvador, de uma maneira especial, muito da música existente nas religiões de matriz africana influenciam intensamente a música popular e a maneira das pessoas fazerem música. Dessa forma, a música que faço tem elementos de tudo isso, além de traços característicos da personalidade do povo nordestino. Vim pra Portugal para um mestrado em Composição na Universidade de Aveiro e acabei fazendo outro mestrado em Ensino de Música. Hoje faço parte do Programa Doutoral em Música da Universidade de Aveiro. Meu projeto relaciona vários elementos da música tradicional e contemporânea no Brasil e aqui em Portugal, estabelecendo relações entre instrumentos daqui e do Brasil, em especial, os cordofones (guitarra, os vários tipos de viola da Península Ibérica, etc.). Além disso, atuo profissionalmente como compositor e performer, sou professor de Análise e Técnicas de Composição no Conservatório de musica de Seia e professor de Teoria e Análise Musical na Escola Profissional da Serra da Estrela.
Influências determinantes para a sua própria música?
Muito da maneira de fazer música no Brasil, misturando tudo o que existe à volta, está na forma como componho e toco. Acabo prestando mais atenção no contexto cultural do que em elementos puramente musicais. Sinto-me muito mais à vontade com liberdade de improvisação e informalidade do que com uma bordagem muito rigorosa. No jazz tem muito disso: não basta compor um tema, é preciso mostrar do que esse tema fala, como se transforma, traduzir traços da personalidade para a música. A improvisação faz a junção entre os lados compositor e intérprete. Por essa razão, muitos dos músicos de jazz que mais me influenciaram foram aqueles com uma bagagem filosófica tão forte quando sua música, como Coltrane e Monk. Gosto de velocidade e sinto que muito disso é devido às frases longas em legato de Charlie Parker e John Coltrane. Os primeiros temas que toquei foram de Charlie Parker. Em toda música que faço, há muitos elementos da música brasileira, principalmente ritmo. Às vezes discretamente, outras nem tanto.
Qual a sua ligação com o jazz?
Além da música brasileira, minha maior identificação é com o blues e o jazz. Incrivelmente, o blues tem algumas características semelhantes à muita coisa da música nordestina, como a predominância de acordes maiores com sétima menor, relação do povo com o rio, a terra e migração para as cidades em busca de uma vida melhor, a maneira de cantar contando uma história acompanhada pela guitarra, entre outras. Sem falar da harmonica, que é algo como um acordeão de boca. Se a guitarra e a harmonica são os principais instrumentos do blues, no nordeste do brasil, o acordeão (que a gente chama de “sanfona”) e a guitarra (que chamamos de “violão”) são os instrumentos equivalentes e símbolos da identidade musical. O jazz me chamou a atenção pela espontaneidade – embora construída, em geral, ao longo de muito estudo e base teórica – e pela liberdade. De certa forma, toco mais jazz com a guitarra, e blues com a harmonica. Assim como a maioria dos brasileiros que passam pela universidade de música, atuo nas áreas da composição e performance na música erudita e popular. Passei um bom tempo tocando rock’n’roll também. Acho que praticamente tudo que toco, atualmente, tem uma abordagem um tanto jazzística. Nos últimos tempos tenho me concentrado mais em tocar em formato solo. Tocar solo é, talvez, mais difícil que tocar em qualquer outro formato. Mas é também um caminho incrível de autoconhecimento. Meu próximo album, que já está quase saindo, é completamente solo e expõe tudo isso, de fragilidades até as coisas específicas que cada ser humano tem. Chama-se “Solitário”, que é algo diferente de “sozinho”. Ser ou estar solitário costuma estar relacionado a um caminho de descoberta e estágio de crescimento na vida.
No processo de composição, quais os elementos que mais valoriza?
Meu processo de composição é baseado em interpretação de mim mesmo, ou seja, em tornar conscientes processos e relações que estejam desconhecidos ou mal compreendidos. É uma espécie de autoanálise psicanalítica. Busco valorizar os elementos da mensagem e discurso musical de forma a serem ferramentas desse discurso. Tecnicamente, procuro, na maioria das vezes, soar quase como um improviso. Uso bastante um procedimento que, em música, chamamos de intertextualidade idiomática, onde é pretendido traduzir e adaptar elementos de uma linguagem para outra. Gosto muito de efeitos percussivos em instrumentos que não sejam de percussão, e de escalas octatônicas, que são muito utilizadas no jazz e meio fora de moda na música erudita, hoje em dia. Procuro dar prioridade a ser verdadeiro comigo mesmo, ao invés de seguir correntes artísticas e tentar ser “pop” ou “autêntico” nos vários nichos que existem atualmente. A arte moderna tem estado muito confusa e superficial.
Planos para o futuro?
Costumo dizer que é necessário ter sempre planos a curto, médio e longo prazo. A curto prazo, tenho alguns concertos no Brasil em julho, onde farei o pré lançamento de “Solitário”. Vai ser parecido com a turnê que realizei pela Galicia em março e abril deste ano, onde toco predominantemente guitarra e algumas peças para harmonica solo. A médio prazo, quero gravar um outro album para harmónica solo. Totalmente solo, sem nenhum outro instrumento, como tenho feito nos concertos. Há anos comprei um album chamado “The act of being free”, de Richard Hunter, e sempre quis gravar algo com essa abordagem. Vou preparar um concerto assim também. Tenho também uma proposta de ser solista num concerto para harmónica e orquestra que compus dez anos atrás e deve acontecer ainda esse ano com uma orquestra aqui de Portugal. E, assim, sigo pensando em concertos, novas músicas, tocar melhor, terminar doutoramento, conhecer outros lugares e aproveitar melhor o tempo. Há também muitas outras coisas que quero fazer, além de música. Tenho tido muita sorte e sou bastante grato pelas oportunidades que surgem a todo momento.