Carimbo Porta-Jazz 2021: Vira do avesso

Ilustração: Spencer Gabor

Durante a pandemia a Associação Porta-Jazz continuou o seu trabalho incansável e promoção do jazz no Porto e a vertente editorial também não parou. Além da programação regular de concertos e do seu magnífico festival, que tem sido anualmente o ponto alto de celebração (e que este ano se apresentou nos jardins do Palácio de Cristal), a Porta-Jazz lançou através do seu selo Carimbo um conjunto de oito discos neste ano de 2021. Oito projetos distintos, oito formas diferentes de trabalhar o jazz e a improvisação do nosso tempo. Alguns dos mais interessantes e criativos projetos do jazz nacional passam por aqui. Daqueles que nos conquistam, seduzem, surpreendem e viram do avesso.

Demian Cabaud
Otro Cielo

Contrabaixista argentino radicado em Portugal há vários anos, Demian Cabaud é um dos mais dinâmicos e versáteis músicos da cena nacional. Com uma discografia extensa, onde se destacam os álbuns Off the ground (2016, em trio com Leo Genovese e Jeff Williams) e A terra é de quem a trabalha (2018, em duo com Torbjörn Zetterberg), Cabaud apresenta neste Otro Cielo a continuação de Aparición (2019). Neste novo álbum, o contrabaixista mantém a formação desse disco, acompanhado por músicos da cena jazz portuense: João Pedro Brandão no saxofone alto e flauta, José Pedro Coelho no saxofone tenor, João Grilo no piano e Marcos Cavaleiro na bateria. O quinteto desenvolve um jazz sólido, assente em composições originais, alternadas com breves momentos de improvisação coletiva. Daqui resulta um álbum coeso, jazz criativo que é alimentado por alguns dos mais brilhantes músicos nacionais.

Hugo Raro
Sombras da Imperfeição

O pianista Hugo Raro estreou-se na condição de líder com o disco Connecting the Dots, lançado em 2020, que foi apresentado este ano no Festival Porta-Jazz. Nesse projeto, onde tinha a companhia de João Mortágua, José Carlos Barbosa e Marcos Cavaleiro, o pianista desenhava as composições e preferia ficar na retaguarda, deixando brilhar o saxofone; e a música – assumidamente jazzística – era marcada pelo equilíbrio. Neste segundo disco, Sombras da Imperfeição, Raro aventura-se ao leme de uma empreitada distinta: a formação é inusitada, juntando uma guitarra portuguesa (Miguel Amaral), clarinete baixo (Rui Teixeira) e percussão (Alex Lázaro) – ao vivo acrescenta-se a cenografia e desenho em tempo real de JAS. Com este disco, Hugo Raro mostra que não vive fechado no universo do jazz e propõe uma música aberta, surpreendente, que derruba fronteiras, onde há espaço para as sombras e para a luz.

Miguel Ângelo Quarteto
Dança dos Desastrados

Enquanto líder, Miguel Ângelo tinha editado até agora dois discos em quarteto: estreou-se com Branco (2013) e seguiu-se A Vida de X (2016). Pelo meio participou em diferentes projetos, destacando-se o seu solo de contrabaixo (I think I’m going to eat dessert, 2017) e o trio MAU (acrónimo para Miguel Ângelo Utopia, 2018). Dança dos Desastrados marca o regresso do quarteto, onde o contrabaixista tem a companhia de João Guimarães no saxofone, Joaquim Rodrigues no piano e Marcos Cavaleiro na bateria. Esta Dança dos Desastrados – projeto que, além da música, inclui uma componente multimédia – é mais um passo em frente desta formação que reúne quatro excelentes instrumentistas, uma formação bem oleada que pratica um jazz vivo. Uma música que rapidamente nos cativa e, em certos momentos, até “vira do avesso” (citando o penúltimo tema do disco).

Susana Santos Silva & Torbjörn Zetterberg
Tomorrow

“Em 2013 a trompetista portuense Susana Santos Silva inaugurou uma parceria com o contrabaixista sueco Torbjörn Zetterberg. O notável disco Almost Tomorrow (Clean Feed) mostrava a dupla a trabalhar uma improvisação aberta onde a aridez exploratória de alguns momentos se encontrava com a procura da melodia. (…) Gravado numa igreja, em Estocolmo, este novo registo Tomorrow revela-se como mais um monumento, um trabalho exemplar sobre como criar música de raiz. Os dois músicos revelam um perfeito conhecimento e entendimento musical, numa exploração onde não sobram pontas soltas, onde há sempre ligação e continuidade. A trompetista Susana Santos Silva, que tem sido uma das grandes forças criativas do jazz português, até já explorou o formato solo (no belíssimo All the Rivers, gravado ao vivo no Panteão Nacional, 2018), e a sua capacidade discursiva acaba sempre por surpreender. Aqui, em duo, o trompete volta a exibir a sua enorme expressividade. Em 2013 Santos Silva e Zetterberg traziam o “quase amanhã”, neste 2021 chegou o “amanhã”. Sem olhar para o passado, sem receio do futuro: esta é a música de hoje. Desafiante e luminosa.”

(Excerto da crítica publicada no Jornal Público / Ípsilon)

Puzzle 3
D

O pianista Pedro Neves continua a ser um dos segredos mais bem guardados do jazz português. Em trio, com Miguel Ângelo no contrabaixo e Leandro Leonet na bateria, Neves já editou três discos – Ausente (2013), 05:21 (2016) e Murmuration (2019) – três registos onde revela a sua exuberância técnica, que justificariam um reconhecimento público mais alargado. Agora, Neves avança com um novo projecto, Puzzle 3, um novo trio de piano, desta vez na companhia de João Paulo Rosado no contrabaixo e Miguel Sampaio na bateria. Diferentemente dos trabalhos anteriores, desta vez a responsabilidade da composição dos temas é partilhada entre os três músicos, é uma empreitada assumidamente mais democrática, de responsabilidade partilhada. O piano lidera, contrabaixo e bateria reforçam a dinâmica, construindo um jazz de alta intensidade.

Vessel Trio
Responde Tu

O Vessel Trio junta Hery Paz (saxofone tenor), Javier Moreno (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria). O trio apresentou-se ao vivo na abertura do festival Porta-Jazz e mostrou ao vivo a sua enorme pujança: jazz feroz, herdeiro da “fire music”. Sobre o concerto escrevemos na altura: “Neste trio não há instrumento harmónico, mas o grupo rapidamente mostra que não precisa: com o saxofone enérgico de Paz a conduzir, o trio embarca em explorações abertas, evidenciando uma excelente articulação e muito diálogo. No saxofone, Paz revela-se fiel seguidor de dois deuses do instrumento: John Coltrane pela chama e Gato Barbieri pela alma latina, que por vezes ganha destaque. O contrabaixo de Moreno e a bateria de Cavaleiro entrelaçam-se no acompanhamento rítmico e na propulsão, mas não só. Todos disparam ideias e alternam-se os momentos de liderança.” O disco reflecte esta actuação ao vivo, revela uma música de fogo que conquista facilmente os adeptos do free aceso.

Coreto
A Tribo

Com liderança de João Pedro Brandão, o Coreto confirma a sua qualidade a cada novo disco. Este ensemble tem interpretado composições de diferentes músicos ao longo do seu percurso e já editou quatro discos: Aljamia (2012), Mergulho (2014), Sem Chão (2015) e Analog (2017). Neste novo disco, A Tribo, Brandão assume a composição, apresentando uma obra conceptual, uma longa suite dividida em sete partes. A formação é a habitual: quatro saxofones (João Pedro Brandão, José Pedro Coelho, Rui Teixeira e Hugo Ciríaco), dois trompetes (Susana Santos Silva e Ricardo Formoso), dois trombones (Daniel Dias e Andreia Santos), guitarra (AP), piano (Hugo Raro), contrabaixo (José Carlos Barbosa) e bateria (José Marrucho). Mais uma vez o Coreto exibe um jazz contemporâneo vibrante, abrilhantado pela qualidade de execução dos intérpretes. Destaque para a parte V, que inclui deliciosas citações de A Love Supreme.

Wiz
Wiz

Wiz é um trio que junta o baterista galego Iago Fernández, o guitarrista francês Wilfried Wilde (radicado na Galiza) e o saxofonista portuense José Pedro Coelho. O disco conta ainda com o trompetista convidado Òscar Latorre, que participa em dois temas. A autoria das treze composições que compõem o disco é repartida entre todos (Fernández, Wilde e Coelho). A articulação instrumental entre guitarra e saxofone funciona na perfeição, num constante diálogo, somando-se o apoio presente da bateria. O trio trata de interpretar com eficácia cada tema, exibindo qualidade técnica. Se a dinâmica do grupo é boa, a adição do trompete eleva ainda mais o nível – ouça-se o sétimo tema, “Krafla Friđ”, que derrete sentimento.