Ao vivo: O Jazz tem Voz!

Fotografia: Atelier Obscura | Mónica de Sousa e Inês Domingues

Numa época marcada pela pandemia, pelos cancelamentos de espectáculos e pela quase ausência de trabalho para músicos e técnicos, nasceu surpreendentemente um novo festival de jazz. O festival O Jazz tem Voz! surgiu pela mão da produtora Clave na Mão, com o apoio do Fundo de Emergência Social da Câmara Municipal de Lisboa, realizando-se entre os dias 9 e 11 de Outubro em Lisboa. O programa apresentou quatro concertos de músicos portugueses, três deles no palco d’A Voz do Operário (daí o nome do festival), um deles num largo ao ar livre (e entrada livre), uma sessão didática e pedagógica (para o público infantil), uma exposição de cartazes históricos do Hot Clube de Portugal (a partir do livro Jazz Posters de João Fonseca), um workshop de ilustração de André Letria com alunos da escola d’A Voz do Operário e uma angariação de fundos para a União Audiovisual, que tem apoiado artistas e técnicos em dificuldade.

Sendo o festival indissociável do contexto da pandemia, é também importante focar a vertente artística e musical. O festival arrancou na noite de sexta-feira, dia 9, com a actuação do Bernardo Moreira Sexteto, que apresentou o projecto Entre Paredes. Em 2003 Moreira gravou o disco Ao Paredes Confesso, homenagem ao cancioneiro de Carlos Paredes com reinterpretações jazzísticas originais. O projecto Entre Paredes é uma recuperação e continuação dessa ideia, agora trabalhada com músicos diferentes e uma abordagem mais alargada que, apesar de manter o centro em Paredes, expõe uma homenagem lata à música portuguesa. Perante uma sala quase esgotada, o sexteto expôs a sua qualidade técnica, reflexo da qualidade individual de cada um dos intervenientes. Ao centro está o contrabaixo do líder Moreira, com dois sopros na frente, Tomás Marques (saxofone, talento da novíssima geração) e João Moreira (trompete), apoiados por Mário Delgado (guitarra), Ricardo Dias (piano) e Joel Silva (bateria). Além de Paredes, a setlist incluiu temas tradicionais, temas de Cristina Branco e de Zeca Afonso. Um dos destaques foi o clássico “Verdes Anos”, aqui numa versão despida, apenas trompete e piano, verdadeiramente memorável. A interpretação d’”A morte saiu à rua”, de Zeca Afonso, puxou pelo ritmo e o grupo mostrou-se exuberante. Como destaques, além do contrabaixo de Bernardo Moreira que exibiu versatilidade (ora pujante a marcar o ritmo, ora sensível a desenhar melodias), os holofotes focaram sobretudo o trompete expressivo de Moreira e o saxofone vibrante de Tomás Marques, um jovem talento que se afirma cada vez mais; e o veterano Mário Delgado que, apesar de trabalhar aqui num espaço reservado, não escondeu a sua guitarra preciosa adornada com efeitos. Após um final muito aplaudido, a banda foi obrigada a regressar para o encore. Foi um arranque perfeito para o festival.

O segundo dia de festival, sábado, abriu com uma conversa-debate, que reuniu três músicos – Beatriz Nunes, Gonçalo Marques e Demian Cabaud – e moderação de Sérgio Machado Letria, n’A Voz do Operário. Seguiu-se um concerto ao ar livre, num espaço público e com entrada livre. O trio Quang Ny Lys fez a sua estreia ao vivo no Largo de Santa Marinha, um largo na zona da Graça, em Lisboa, perante um espaço cheio, com todos os lugares sentados ocupados, muita gente em pé e até pessoas nas janelas de casa. Este grupo junta três nomes grandes do jazz português, dois deles vencedores do Prémio RTP/Festa do Jazz de Músico do Ano: Rita Maria (cantora) e João Mortágua (saxofonista) já foram galardoados. A eles junta-se o guitarrista Mané Fernandes, guitarrista do Porto que tem mostrado a sua originalidade ao leme de projectos como BounceLab e The Mantra of the pHat Lotus. A premissa – retrabalhar standards do cancioneiro jazzístico – poderia soar banal, mas pelos músicos envolvidos desconfiávamos que o projecto iria surpreender. O grupo faz uma exploração de conhecidos standards da história do jazz, mas fá-lo de uma forma muito original. Servindo-se de diversos efeitos electrónicos, na voz, mas também na guitarra e no saxofone, o trio desenvolve uma exploração atmosférica de clássicos como “I get along without you very well” ou “You go to my head”. Estas velhas músicas ganham novas cores pela abordagem criativa do grupo, assente no abuso de efeitos electrónicos, que resulta estranhamente interessante. O segundo dia de festival fechou com o grupo do saxofonista César Cardoso, que apresentou ao vivo o material do álbum Dice of Tenors, disco editado em 2020 que homenageia saxofonistas tenor históricos. Estiveram em palco César Cardoso (saxofone), Luís Cunha (trompete), José Soares (saxofone), Lars Arens (trombone), Jeffery Davis (vibrafone), Óscar Graça (piano), Demian Cabaud e Marcos Cavaleiro (bateria). Infelizmente não tivemos oportunidade de assistir a esta actuação.

No domingo o festival arrancou de manhã, com a sessão O Jazz é fixe!. Perante uma sala cheia de crianças e adultos acompanhantes, o trio constituído por Vânia Couto (voz e guitarra), Alvaro Rosso (contrabaixo) e João Mortágua (saxofone) serviu-se dos sons dos instrumentos para surpreender e cativar a atenção da pequenada, um público jovem mas exigente. Para fechar o festival, a Voz recebeu no final de tarde de domingo o duo Songbird. Este projecto, que junta Luís Figueiredo no piano e João Hasselberg no contrabaixo, trabalha uma exploração de melodias populares assentes apenas no piano e contrabaixo, uma abordagem clássica e despida, mas que consegue sempre conquistar os espectadores. Apesar de ter assistido apenas o início do espectáculo, daquilo que vi o duo confirmou os predicados e foram ao encontro daquilo que já nos mostraram os registos (Vol. I e Vol. II). Música delicada, mantendo o eixo melódico e sentimento. Foi uma boa despedida para o festival O Jazz tem Voz!, cujo surgimento é excelente notícia: pela oportunidade de dar palco a músicos portugueses, pela luz de esperança que traz, pela vertente solidária. E também por ter aberto ao público as portas d’A Voz do Operário, que mostrou ter boas condições para acolher mais eventos. Que aí venham mais edições deste festival.

Texto publicado originalmente no site Jazz.pt.