Rui Eduardo Paes
“O Fagote de Shatner e Outros Contos”
(Chili com Carne, 2019)
William Shatner é um conhecido actor canadiano, sobretudo popularizado pela sua participação na saga Star Trek com a personagem de Capitão Kirk. O título “O Fagote de Shatner” refere-se a uma suposta cena na saga Star Trek (cena que nunca vi) em que Kirk integra um grupo de madeiras, naquele que seria um hobbie pouco habitual na era espacial. Na vida real Shatner não toca fagote, mas tem uma carreira musical, iniciada no ano de 1968 com o disco “The Transformed Man”, em que interpreta canções pop em registo spoken word. Neste percurso destaca-se um raro e memorável momento na musica pop, o disco “Has Been” editado em 2004, mostrava Shatner a recitar letras de canções populares, com destaque para a sua versão de “Common People” dos Pulp.
Neste seu novo livro o musicólogo Rui Eduardo Paes (REP) parte do fagote de Shatner para mais uma exploração entre a música e outras áreas. De resto, o título é enganador, não se tratam de “contos”, mas de ensaios, no registo livre, pessoal e quase-literário que Paes já definiu como sua marca. O livro divide-se em três grandes capítulos, cada um dedicado a um tema muito específico: sexo, loucura e morte. Mais uma vez, REP volta a fazer a associação entre música e músicos e outras áreas, os referidos temas.
Com actividade na escrita sobre músicas ao longo de três décadas, REP publicou cinco livros entre 1996 e 2003: “Ruínas: A Música de Arte no final do Século” (Hugin, 1996); “A Orelha Perdida de Van Gogh” (Hugin, 1998); “Cyber-Parker” (Hugin, 1999); “Phonomaton: As novas músicas do início do Séc. XXI” (Hugin, 2001); e “Stravinsky Morreu: Devoções e utopias da música” (Hugin, 2003). A vertigem editorial abrandou com a falência da editora Hugin, mas Paes regressou à edição pela Chili Com Carne: “Bestiário Ilustríssimo” (2012); “A maiúsculo com círculo à volta” (2013); “Bestiário Ilustríssimo II / Bala” (2015); e “Anarco-Queer? Queercore!” (2016).
Chega agora este novo “O Fagote de Shatner e Outros Contos”. Depois se ter focado nos cruzamentos entre punk hardcore, activismo LGBTI+ e anarquismo, Paes volta a focar-se nas conexões entre a música e outras artes, assente nos referidos três pilares (sexo, loucura e morte). O livro abre com o capítulo sobre sexo: “O Fagote de Shatner (Sexus)”. Paes vai interligando músicos que trabalham o sexo como temática, ou músicos para quem a sexualidade funciona como tema. São várias as geografias musicais exploradas, do jazz ao rock, atravessando fronteiras estéticas, de Fred Hersch a Mykki Blanco.
No segundo capítulo – “Entrespelhos (Dementia)” – arranca com o “Elogio da Loucura” de Erasmo de Roterdão, fazendo a ligação com o disco “Praise of Our Folly” da Lisbon Freedom Unit (super-grupo que reúne um grupo de improvisadores portugueses consagrados). A loucura acaba por ser associada a diversos músicos e músicas, fazendo-se ligações que vão de Robert Fripp a Henry Grimes. Para fechar o livro chega o tema da morte. O capítulo final “Negro, Negríssimo (Mortem)” é o mais pequeno e menos explorado. REP aborda a morte, sobretudo aquilo que refere como “morte em vida”, e assenta boa parte da sua capítulo no caso de David Bowie, que editou o disco “Blackstar” em simultâneo com a sua morte, passando ainda por Camané e Martial Solal.
Na introdução do livro Eduardo Paes diz que o texto pode assemelhar-se a um “monólogo de alguém que sofre de degeneração neurológica” e assume uma intenção: “são divagações pensantes (…) aspirando, na narrativa das ideias, à forma literária de conto”. Talvez não encontremos nem uma coisa nem outra, mas acabamos sempre por ser surpreendidos. Neste “O Fagote de Shatner e Outros Contos”, o musicólogo Rui Eduardo Paes regressa com toda a força e originalidade, fazendo ligações imprevistas, cruzando músicas e diferentes áreas, assinando um documento que volta a marcar a escrita sobre música em Portugal.