O contrabaixista e compositor André Carvalho, músico nascido em Lisboa e residente em Nova Iorque, acaba de lançar o seu terceiro disco como líder. O novo álbum “The Garden of Earthly Delights” representa mais um passo sólido na sua evolução musical e foi gravado na companhia de André Matos, Jeremy Powell, Eitan Gofman, Oskar Stenmark e Rodrigo Recabarren. Esta música nova será apresentada ao vivo em concertos no Hot Clube de Portugal (1, 2 e 3 de Agosto), Out.Jazz em Lisboa (4 de Agosto), Quebra-Jazz em Coimbra (23 e 24 de Agosto), Reitoria da Universidade do Minho (5 de Setembro) e Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa (6 de Setembro). Em entrevista, André Carvalho apresenta o seu percurso e fala sobre este novo trabalho.
Como nasceu a tua ligação com o jazz?
Nasceu quando comecei a ir ver concertos ao Hot Clube, quando comecei a trocar CDs com amigos e a ir à biblioteca de Oeiras ouvir discos.
Quais são as tuas principais influências como contrabaixista?
São muitas, há muitos contrabaixistas que gosto de ouvir. Citando alguns: Ray Brown, Paul Chambers, Sam Jones, Ron Carter, Charlie Haden, Rufus Reid, Oscar Pettiford, Larry Grenadier, Ben Street, Matt Brewer, Thomas Morgan, Joe Sanders, Harish Raghavan, Wilbur Ware, Robert Hurst, Chris Tordini, entre muitos outros que provavelmente me estou a esquecer mas que adoro ouvir. Mas há muitos outros instrumentistas que me influenciam mesmo como contrabaixista: Sonny Rollins, Miles Davis, Keith Jarrett, Herbie Hancock, Wynton Kelly, Sonny Stitt, John Coltrane, Ben Monder, Peter Bernstein, Mark Turner, Stan Getz, Chris Cheek, Sam Yahel, David Liebman, Lee Konitz, Ornette Coleman, Billy Higgins, Tony Williams, Elvin Jones, Paul Motian, Bill Frisell, entre muitos outros. Depois há também compositores que gosto imenso: Brahms, Messiaen, Bach, Beethoven, Thelonious Monk, Bartok, Ligeti, Charles Ives, Shostakovich, Hindemith, Stravinsky, Dutilleux, Penderecki, Debussy, Milton Nascimento, entre muitos outros.
O que representaram os dois primeiros discos, “Hajime” e “Memória de Amiba”, no teu percurso como músico?
Representam uma fase da minha vida musical, assim como este representa a minha fase actual e o próximo uma fase diferente, espero eu. Os discos são como uma fotografia: aos 4 anos éramos assim, aos 15 de outra forma e aos 59 de outra ainda. Dito isto, os meus primeiros dois discos representam momentos importantes dos quais tenho excelentes memórias e histórias passadas com os meus amigos músicos com que gravei e toquei e das pessoas que assistiram aos nossos concertos ou que de alguma forma chegaram à minha música. Foram sem dúvida momentos importantes que me fizeram chegar onde cheguei hoje e se não os tivesse gravado, a minha vida seria de certeza diferente.
Que características e ideias traz este novo disco?
Já não gravava um disco em nome próprio há algum tempo. Neste hiato de cinco anos, muitas coisas foram acontecendo na minha vida, bastantes mudanças, mudei de sítio onde vivia, passei por um momento em que estava a fazer mestrado para além de muitas mudanças pessoais, práticas, hábitos e rotinas. Tudo isto, de uma forma ou outra teve influência na maneira como abordo a música e a vida. Acho que este disco é bastante diferente dos meus dois discos anteriores. Primeiro, a música foi toda pensada de um ponto de vista mais amplo, exigindo maior planeamento, visto que escrevi uma suite que tem a dimensão de um álbum ao invés de um conjunto de temas soltos. Nestes últimos cinco anos fui exposto a músicos, música e cultura diferente. Sinto que este disco é mais cru, dá mais espaço aos músicos mas ao mesmo tempo a música escrita é mais exigente. Acho também que há mais influências presentes de outros estilos musicais que não só jazz, como a música contemporânea e música do séc. XX, rock e música improvisada.
Porque este título, “The Garden of Earthly Delights”? Como surgiu a inspiração em Bosch?
O quadro de Hieronymus Bosch teve uma influência de tal forma grande na música, que senti que qualquer outro título seria estar a evitar o óbvio e o natural. Curioso é que o quadro não tem título dado pelo seu autor e que o título pelo qual o conhecemos foi dado bastante depois do quadro ter sido pintado. Na verdade, a inspiração surgiu por mero acaso. Estava a revisitar a obra de Bosch, vendo uns livros e uns documentários e algo despertou em mim. Sempre quis escrever uma obra mais longa em vários movimentos ou andamentos e que tivesse um conceito forte por trás. O quadro veio completar esta minha vontade. Este quadro em particular tem algumas características que me inspiraram muito como o seu universo fantástico, o mistério, o simbolismo, a iconografia, a perversão, o bizarro, a inocência e a pureza. Para além disso, a responsabilidade que temos enquanto seres vivos, o nosso papel na Terra e na sociedade e a consciencialização e responsabilização dos nossos actos.
Um parceiro musical com quem tens uma ligação especial é o guitarrista português André Matos. Como o conheceste e como tem sido essa parceria?
Já conhecia o André Matos antes de vir para Nova Iorque. Não nos conhecíamos muito bem para ser sincero, mas aos poucos tornou-se um irmão. Sempre gostei muito de o ouvir tocar, da música que escreve e do seu som. Mal cheguei a Nova Iorque quis formar um grupo meu para tocar a minha música e sabia que queria ter o André no meu grupo. Aos poucos foi-se criando uma relação pessoal e isso acaba por se refletir na música. É sempre bom tocarmos, independentemente do contexto em que o fazemos, quer seja no meu grupo, num grupo dele, em duo, música escrita, standards ou free. Além disso, o André é um músico imprevisível, hoje pode ser assim e amanhã de uma forma completamente diferente e eu gosto disso! Por isso, tocar com o André é sempre bom!
Além do André Matos, tocas no discos com os músicos Jeremy Powell, Eitan Gofman, Oskar Stenmark e Rodrigo Recabarren. Porque escolheste trabalhar com estes músicos?
O Eitan Gofman e o Oskar Stenmark foram meus colegas quando estava na Manhattan School of Music. Desde que os conheci que gosto muito da maneira como tocam, do seu som, da sua disponibilidade musical e abertura de espírito. Tocávamos muito quando estávamos a estudar. O Rodrigo e o Jeremy conheci mais tarde através de amigos de amigos, fazendo sessões. Ambos têm um som que gosto e são músicos muito experientes. Acho que os consigo identificar a todos após ouvir algumas notas e isso para mim é muito importante.
Quais são os teus planos para os próximos tempos?
Tenho um novo trio com o André Matos e o baterista John Suntken cuja liderança é partilhada por todos. Tocamos música de todos e também temas de outros autores de estilos muito diferentes. Além deste grupo, estou a começar a escrever música para um trio com o André Santos, temos um concerto marcado no CCB durante o Verão, e talvez haja mais algum outro durante o Verão em Portugal. Sem entrar em grandes detalhes, a música é inspirada em palavras. Para além disto, quero escrever música para um grupo sem instrumento harmónico e escrever música para uma versão 2.0 do grupo do “The Garden of Earthly Delights” para uma eventual sequela deste disco. Gostava de gravar um novo disco, se possível no fim deste ano ou princípio do próximo.