Jazz da pandemia: produção nacional de 2020

[O Triunfo da Morte, Pieter Bruegel, o Velho]

A pandemia atacou ferozmente a cultura mas, apesar de tudo, a música continuou a florescer em registos gravados, particularmente nos terrenos do jazz e da música improvisada. Depois de um primeiro apanhado dos registos do ano, aqui fica mais uma seleção da colheita musical de 2020, para fechar definitivamente o ano.



André B. Silva
The Guit Kune Do

(Carimbo Porta-Jazz, 2020)

Como membro dos The Rite of Trio o guitarrista André B. Silva foi responsável por um dos discos mais originais dos últimos anos, combinando jazz criativo com esquizofrenia rock. Agora Silva lidera um ensemble de guitarras, uma formação completamente atípica: cinco guitarras (Eurico Costa, AP, Miguel Moreira, Francisco Rua e o próprio André B. Silva) apoiadas por baixo eléctrico (João Próspero) e bateria (Diogo Silva). O nome do disco é um trocadilho com a arte marcial Jeet Kune Do, e Silva lidera uma muralha de guitarras. Onde há uma guitarra eléctrica há sempre um espírito rock a assombrar, mas contra o que seria expectável aqui não se trata de uma amálgama de distorção e eletricidade, encontramos antes melodias e ambientes que se cruzam e se entrelaçam. Apesar da profusão de sons que se sobrepõem, cada tema resulta como malha coerente. Esta abordagem proposta por André B. Silva resulta num belo conjunto de temas originais, que conquistam rapidamente o ouvinte.



César Cardoso
Dice of Tenors

(Ed. autor, 2020)

Saxofonista, compositor e arranjador, César Cardoso chegou ao quarto disco de originais com este Dice of Tenors. Depois de solidificar estatuto com os álbuns Half Step, Bottomshelf e Interchange, Cardoso apresenta agora um tributo a saxofonistas tenores. Os homenageados são Hank Mobley, Benny Golson, John Coltrane, Dexter Gordon, Sonny Rollins e Joe Henderson; e Cardoso trata de interpreter seis standards celebrizados por cada saxofonista. A estas revisões acrescentam-se dois temas originais. César Cardoso (sax tenor, arranjos), tem a companhia de uma equipa estelar: Jason Palmer (trompete), Miguel Zenón (saxofone alto), Massimo Morganti (trombone), Jeffery Davis (vibrafone), Óscar Marcelino da Graça (piano), Demian Cabaud (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria). O conjunto trata de reinterpretar os clássicos com alma e inteligência, respeitando a essência e acrescentando novas cores. Temas intemporais como “Giant Steps”, “Along Came Betty” ou “St. Tomas” ganham nova vida e, com este disco, o saxofonista dá mais um grande passo em frente na sua carreira.



Gelber Flieder
Ölbaumgewächse

(Creative Sources, 2020)

Gravado em Paris, em Dezembro de 2016, este disco reúne um trio improvável: o português João Camões (viola d’arco), o francês Yves Arques (objectos, electrónica) e a alemã Luise Volkmann (saxofone). Camões tem feito o seu percurso na improvisação livre, com colaborações com músicos e projectos como Open Field String Trio, earnear e Nuova Camerata, entre outros. Volkmann tem um percurso versátil, com destaque para a sua formação Été Large, espécie de big band que trabalha uma música originalíssima, num cruzamento entre o jazz moderno e a música contemporânea (ouça-se o disco Eudaimonia, 2017). Arques está também ligado à improvisação, e já registou uma outra colaboração com João Camões, no trio Pareidolia (que editou o álbum Selon le vent, JACC). Juntos, Camões, Volkmann e Arques desenvolvem uma música improvisada de natureza atmosférica, que vai de ambientes fantasmagóricos, passando por diálogos claros a três vozes até momentos de tensão. Sempre com os três em convergência, sempre na mesma frequência.



João Lobo
Simorgh

(Shhpuma, 2020)

João Lobo conquistou o mundo do jazz e foi mais além: acompanhou o lendário Enrico Rava, integrou os grupos Matéria Prima de Carlos Bica, Giovanni Guidi Trio, Norman, Tetterapedequ, tem colaborado com o guitarrista Norberto Lobo (Oba Loba) e homenageou Moondog numa parceria com Filipe Melo, entre outros projectos. Em 2017 apresentou Nowruz, uma proposta arriscadíssima: um solo de bateria onde explorou diferentes ambientes. Agora aventura-se num novo projecto, o segundo assinado apenas com o seu nome, a liderar um trio com o habitual parceiro Norberto Lobo (guitarra eléctrica) e Soet Kempeneer (contrabaixo). O novo trio trabalha um inusitado rock exploratório, que ora pode soar a malha caseira, viagem oriental, xamanismo ou vertigem alucionégica dos 70’s. Este disco encaixa bem no catálogo da Shhpuma, a sub-label da Clean Feed para projectos menos jazzísticos e fora da caixa.



João Martins
Hundred Milliseconds

(Carimbo Porta-Jazz, 2020)

O autor apresenta-se: “Este disco tem como conceito as primeiras impressões e como estas nos influenciam na percepção com que ficamos de algo, neste caso da música.” As primeiras impressões são positivas e neste seu disco de estreia o baterista e compositor João Martins assume a liderança de um quarteto atípico. Além de ser liderado por um baterista, um facto já em si pouco comum, o grupo tem uma configuração inusitada: bateria, dois saxofones (Fábio Almeida e Gabriel Neves) e uma guitarra (Nuno Trocado), abdicando do habitual contrabaixo. A música trabalhada pelo quarteto é rica e atravessa diferentes mundos sonoros. João Martins apresenta-se ao mundo com um disco diverso, onde se vai da energia rock até uma matriz contemplativa, com a bateria a pontuar sabiamente cada momento.



José Lencastre / Hernâni Faustino / Vasco Furtado
Vento

(Phonogram Unit, 2020)

Este disco é histórico desde logo porque se trata da primeira edição da novíssima editora Phonogram Unit, um selo editorial criado por cinco músicos nacionais ligados: José Lencastre, Rodrigo Pinheiro, Jorge Nuno, Hernâni Faustino e Vasco Furtado. Três destes juntaram-se num trio inédito, que gravou este Vento: o saxofone de José Lencastre conta com o apoio do contrabaixo de Hernâni Faustino e a bateria de Vasco Furtado. O trio luso alimenta uma sessão de improvisação livre que se divide em seis temas. Esta música é herdeira da história, vai beber às raízes, ao free jazz e à fire music, é improvisação pura guiada pelo saxofone e amplificada pelas ideias e força da secção rítmica. Uma música de fogo que se descobre continuamente e vai sempre crescendo.



José Lencastre / Jorge Nuno / Felipe Zenícola / João Valinho
Anthropic Neglect

(Clean Feed, 2020)

O mesmo José Lencastre tem neste quarteto um projecto diferente. Aqui Lencastre conta com a companhia de Jorge Nuno (guitarra eléctrica), Felipe Zenícola (baixo eléctrico) e João Valinho (percussão). Também assente na improvisação sem rede, esta é uma música distante das sonoridades de Vento: é música de choque e contraste, diálogo e confronto, com os quatro elementos em permanente desafio, ligação e provocação. São múltiplas as ideias lançadas, sobram muitas pontas soltas, mas há um eixo que se vai seguindo. Lencastre, Nuno, Zenícola e Valinho constroem um monumento de jazz abstracto com laivos de rock desmembrado, música que nunca se deixa apanhar.



Ricardo Formoso
Implosão

(Carimbo Porta-Jazz, 2020)

Nascido na Corunha, Ricardo Formoso é uma figura incontornável do jazz português, particularmente da cena nortenha. Neste seu segundo disco, o trompetista apresenta mais um conjunto de composições originais, interpretadas com dinâmica. A liderar está o fliscorne de Formoso, acompanhado por uma secção rítmica que conhece bem, o contrabaixista Demian Cabaud (nascido na Argentina) e o baterista Marcos Cavaleiro (o único português do quinteto); juntam-se ainda dois convidados internacionais, o saxofonista canadiano Seamus Blake e o pianista espanhol Albert Bover. Abençoado por Santo Hardbop, o quinteto desenvolve um jazz clássico ancorado no som quente de Formoso, alicerçado por uma equipa muito sólida.



Ricardo Pinheiro
Caruma

(Inner Circle Music, 2020)

Guitarrista, compositor e pedagogo, Ricardo Pinheiro tem desenvolvido um percurso sólido e diverso, e tanto o encontramos ao lado de lendas (como Dave Liebman e Mário Laginha no disco Is Seeing Believing?) ou acompanhado por jovens talentos (como Tomás Marques e Diogo Alexandre no projecto LAB). Aqui Ricardo Pinheiro traz-nos uma proposta musical muito especial: composições originais alimentadas apenas por guitarras, vozes e efeitos electrónicos. Ao seu lado, Pinheiro tem dois músicos de peso no panorama internacional: Theo Bleckmann e Mônica Salmaso. O resultado é um delicioso conjunto de paisagens delicadas, música que se revela sem pressa, com todo o espaço. Uma proposta distinta que merece atenção.



Ruben Alves
Manto

(Escutar, 2020)

O pianista Ruben Alves conta já com um currículo sério, onde se destacam as gravações do trio Kolme. Neste novo disco, Manto, Alves apresenta música original que cruza referências, da clássica à tradição portuguesa. O piano de Ruben Alves tem aqui a companhia de Miguel Menezes (contrabaixo), Marcos Alves (bateria) e João Ferreira (percussão); a quem se juntam ainda Luís Guerreiro (guitarra portuguesa) e Sandra Martins (violoncelo), embora estes não participem em todos os temas. Ao longo de doze faixas Alves revela melodias viciantes envoltas em arranjos sóbrios. Um disco de música acessível que poderá conquistar públicos mais alargados.



Savina Yannatou & Joana Sá
Ways of notseeing

(Clean Feed, 2020)

A pianista portuguesa Joana Sá (n. 1979) tem trabalhado a imprevisibilidade e o seu percurso atravessa diferentes configurações – do solo (Through This Looking Glass e Elogio da Desordem), ao duo (Almost a Song), passando pelo trio (Powertrio) até ao quinteto (Turbamulta). O percurso da cantora grega Savina Yannatou (n. 1959) cruza a tradição grega, a influência clássica e a improvisação. Juntas, Yannatou e Sá desenvolvem uma música curiosa que atravessa universos, a partir de um diálogo estável entre voz e piano. A voz é expressiva e dramática, o piano sustém a estrutura, mas evita a exuberância, prefere a contenção. A junção é equilibrada e bem temperada.



Sérgio Carolino & Cândido Fernandes
Duo Adamastor

(Editions Ava, 2020)

Sérgio Carolino é um virtuoso instrumentista da tuba, com um percurso assinalável e múltiplas parcerias, onde se destaca o trio TGB (com Mário Delgado e Alexandre Frazão). Agora Carolino regressa ao duo, um formato onde já deu boas provas – o seu trabalho em dupla com o acordeonista João Barradas, Surrealistic Discussion é um dos seus trabalhos mais marcantes. Aqui apresenta-nos a sua tuba a dialogar com o piano de Cândido Fernandes e a dupla trata de interpretar obras de quatro compositores – Alexandre Delgado, Howie Smith, Eurico Carrapatoso e Luís Cardoso. O disco conta ainda com convidados: Fernando Ribeiro (Moonspell na voz/narração, Mário Marques nos saxofones e Ângela Carneiro, Susana Monteiro e Sara Abreu nos violoncelos. Estamos no campo da clássica, mas a abordagem é pouco convencional, a proposta é assumidamente atípica e os instrumentos sabem dialogar com ponderação.



Vítor Joaquim
The Construction of Time

(Ed. autor, 2020)

No ano de 2020, Vítor Joaquim publicou três gravações de actuações ao vivo a que chamou “Live Series”: At The Spitz, London, 2005 (com Simon Fisher Turner), At ZDB, Lisbon, 2006 (com Carlos Zíngaro) e At Fonoteca, Lisboa, 2005 (com Nuno Moita/Draftank). Em paralelo, editou um registo novo, este The Construction of Time, em parceria com João Silva. Aqui, o trompete de Silva serve de fonte sonora para a manipulação de Joaquim, que transforma o som e vai criando e somando ambientes, de evocações espaciais a momentos cavernosos, numa amálgama sonora desafiante. Nestes estranhos tempos de pandemia, a música nunca deixou de surpreender.